No intuito de demonstrar a íntima
relação entre as ideias gnósticas dos primeiros cristãos e a psicologia,
recorro ao teólogo e estudioso da psicanálise, Carl Gustav Jung que,
corajosamente, analisou as expressões religiosas, não pelo lado da fé, mas pelo
seu conteúdo arquetípico.
O introspectivo Jung era filho de um
Pastor protestante, e, quando criança diz ter experimentado “Deus” como um
irresistível desejo atuando dentro de si. Sentiu todo o impacto da imago paterna atemorizante e poderosa
em seus sonhos. Mais tarde, como estudioso da alma humana, veio a romper com Freud,
seu melhor amigo, para decididamente, explorar as camadas profundas do
inconsciente num campo em que o pai da psicanálise mais temia ―, o das
religiões.
Certa vez, respondendo aos que o
criticavam por violar os atributos de Deus, Jung, assim respondeu: “Não
pretendo de modo algum discutir a existência de Deus, mas permito-me por as
afirmações humanas sob uma lente. Estou inteiramente ciente de que nenhuma de
minhas reflexões toca o Incognoscível”
Sobre a aproximação dos conceitos
gnósticos com a psicologia, a historiadora das religiões, Elaine Pagels, em seu
livro ― “Os Evangelhos Gnósticos” —
Editora Objetiva, afirma: “a
Psicoterapia e o Gnosticismo têm em comum, a fascinação pelo significado não-literal da linguagem”. Diz ainda a autora: “o
evangelho de João encontra-se
impregnado pelo pensamento gnóstico. Há uma afinidade
indiscutível do
“Prólogo” do
Quarto evangelho com a gnose, no tratamento que ele dá aos temas:
luz/trevas, novo nascimento, definição
de “vida eterna” pelo conceito
de conhecimento”.
“A Treva não
está na matéria nem na carne, ela provém da rejeição
pelo ser humano da verdade que o deve
vivificar”, observou
— Leon
Dufour, no seu livro ― “Leitura
do Evangelho Segundo João IV” (página 230)
Os Gnósticos, em sua maior parte, viveram nos primeiros séculos da Era
Cristã. Aliás, foram os cristãos e os judeus ortodoxos, e não eles, que criaram
esse termo conceitual para denominá-los.
O “Evangelho da Verdade” ou Gnose
Kardias (conhecimento do coração) tem conceitos comuns à psicanálise. Os
gnósticos que o escreveram podem ser considerados como os primeiros
profissionais da psicologia profunda, pois em sua concepção visavam mais uma
transformação interior do indivíduo. Na gnose
há um desejo de fusão com o ser original ou primevo e, de certa forma, se faz
sentir a presença de um sentimento nostálgico de se alcançar a unidade com o
absoluto.
Stephan A. Hoeller, em seu livro, “A Gnose de Jung” (página 46) cita algo interessante, relativo ao
pensamento gnóstico:
“O conhecimento do coração, em favor
do qual os gnósticos se empenhavam não podia ser adquirido por meio de uma
barganha com Jeová, através de um tratado ou aliança que garantisse bem estar
espiritual e físico ao homem, em troca do cumprimento servil de um conjunto de
regras [...]. [...] Também não negaram a importância da missão do personagem
misterioso, que era conhecido pelos homens como o rabino
Joshua de Nazaré.
A Lei e o Salvador, os dois mais reverenciados conceitos de judeus e cristãos
tornaram para os gnósticos apenas meios para um fim maior que esses mesmos
conceitos. As suas dúvidas relativas à encarnação física de Jesus e sua
reinterpretação da ressurreição enfureciam os judeus e cristãos ortodoxos,
assim como, os muçulmanos e os budistas”.
C. G. Jung, tinha uma profunda simpatia pelo
gnosticismo, por ver nele, não um conjunto de doutrinas, mas a expressão
mitológica de uma experiência interior. Os gnósticos foram pioneiros em trazer
uma profusão de significativo material, onde se podia colher profundas
percepções da estrutura da psique, do conteúdo inconsciente coletivo. Foi
estudando incansavelmente as expressões míticas dos gnósticos que Jung formulou
a teoria dos arquétipos. Para ele, os arquétipos existem tanto na luz como nas
sombras da mente. No mundo da luz, encontram-se deuses e deusas de
inquestionável numinosidade e indescritível sabedoria e beleza, enquanto que
nas trevas habitam os monstros demoníacos nutridos pelas sombras da
personalidade humana. Tudo em consonância com o que diz o Evangelho de Filipe: “A
verdade não veio nua ao mundo, mas em modelos e nas imagens”.
Há quem diga que Jung
era um gnóstico, justamente por ele considerar que a bondade e a obediência às
leis morais não eram requisitos substitutivos para se chegar à plenitude do
ser. Sobre esse ponto, diz ainda Stephan Hoeller (Gnose de Jung, página 82): “A psicologia gnóstica sempre admitiu
que a divisão artificial ou a fragmentação da plenitude do ser entre o bem e o
mal consistia numa armadilha das forças tirânicas empenhadas em manter a
humanidade acorrentada. Dividindo a vida em metades separadas e ordenando ao
ser humano que aderisse a uma dessas metades, com exclusão da outra, o poder
demiúrgico levou a humanidade a cometer violência contra o lado sombrio da alma,
e induziu-a a autocondenar-se a um estado de fragmentação e de culpa”.
No Livro “Eclipse de Deus”, de Martin Buber (página 129), há um
diálogo entre ele e Jung, em que o último faz a seguinte declaração: “Por causa do caráter terrivelmente
paradoxal de nossa existência, é compreensível que o inconsciente também
contenha uma imagem paradoxal de Deus, que não se harmoniza bem com a
sublimidade e pureza do conceito dogmático de Deus”.
Mas sobre essa afirmação aparentemente
ambígua de Jung, existe uma formulação análoga, que se encontra registrada no Evangelho Gnóstico de Filipe, senão
vejamos:
“Luz e treva, vida e morte, direita e
esquerda são irmãos entre si. São inseparáveis. Por isto, nem os bons são bons
e nem os maus são maus, nem a vida é vida, nem a morte é morte. Assim é que
cada um se dissolverá em sua origem primordial”.
Por Levi B. Santos
Guarabira, 22 de fevereiro de 2012
Site da imagem: gnosisonline.org
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FONTES bibliográficas:
11 Stephan
A. Hoeller ― A Gnose de Jung ― Editora Cultrix
22.
Aniella
Jaffé ― O Mito do Significado na Obra de Jung ― Cultrix
33.
Martin
Buber ― Eclipse de Deus ― Verus Editora
44.
Elaine
Pagels ― Os Evangelhos Gnósticos ―
Editora Objetiva
55.
Leon
Dufour ― Leitura do Evangelho
Segundo João IV ― Editora Loyola
66.
Coleção
de Nag Hammadi ― Evangelho de Filipe
77.
Frank
McLynn ― ‘JUNG –
Uma Biografia’ ― Record Editora
12 comentários:
Nobre mago está escrito: "nem a morte é morte. Assim é que cada um se dissolverá em sua origem primordial”.
O que significa sem termos técnicos esse "se dissolverá"?
Segundo a leitura psicanalítica morreu, morreu, escafedeu-se, acabou-se, ou existe vida consciente pós morte?
Excelente tema, Levi!
Até hoje, eu desconhecia sobre esta ligação de Jung com o gnosticismo e acho que reciso muito estudar os pensamentos deste cara.
Sobre o Evangelho de João, embora acredite que ele tenha sido escrito com uma finalidade apologética contra o "gnóstico" Evangelho de Tomé, penso que este envolvimento do autor com o pensamento herege acabou trazendo-lhe algumas marcas gnósticas. São frases e colocações que não conseguem se harmonizar no contexto do livro que, em outras passagens, nos leva a uma visão fundamentalista baseada na salvação através da crença em Jesus como o Filho de Deus. Só que ainda assim, o enfrentamento dado ao gnosticismo de Tomé inevitavelmente revela a outra parte da laranja.
Na época da Guerra Fria e do regime militar, a apologética feita em relação ao comunismo tornava a esquerda até mais atrativa.
Por que será?
Penso que o ataque ao adversário ou à outra parte tida como ruim e desprezada, acaba revelando aquilo que está oculto no agressor. Quem ataca se fragiliza e se macula mais ainda com o adversário.
Forte abraço!
Caro herege Franklin
Segundo Jung, a psique empenha-se pela reconciliação dos afetos opostos ou antagônicos, ou seja, procura a síntese ou união entre as duas metades da laranja que foram separadas no mito da QUEDA, para que entendêssemos o OUTRO.
A metade vida está contida na metade morte e vice versa. Se a vida é luz e a morte é treva, uma depende da outra para existir. Esses opostos estavam dissolvidos lá na nossa gênese, em um complexo único
Por isso, é que existe em nós, a nostalgia do idílico Éden (Paraíso Perdido), no tempo em que a maçã ainda não tinha sido bicada (rsrs)
Rodrigo
Sobre Jung e o Gnosticismo, aconselho a leitura do livro "A Gnose de Jung" de Stephan A. Hoeller. Eu adquiri esse livro há mais ou menos 15 anos.
Nele você vai encontrar "Os Sete Sermões aos Mortos", que fazem parte do Livro Vermelho de Jung , lançado recentemente.
Uma leitura imperdível.
Sobre o que você disse: Quem ataca se fragiliza e se macula mais ainda com o adversário., concordo em gênero número e grau. (rsrs)
Beleza Nobre Mago, mas existe ou não existe vida consciente após a morte (física) para os pensadores da psicanálise e em sua opinião particular também?
Franklin
É a tragicidade da vida que infunde em nós o desejo do “Eterno Retorno”. Na verdade, o que não queremos é admitir que mais cedo ou mais tarde, a velha e lúgubre vai chegar com sua foice em punho para ceifar cada um de nós.
Quanto à morte física, penso que ela não é total, por que o nosso DNA continua a imprimir a nossa marca perpétua enquanto durar os nossos descendentes, perpetuando-se de geração em geração. Talvez seja por isso se diz que os filhos são bênçãos .
Mas tanto a psicanálise quanto a religião tem o mesmo campo de trabalho ― a alma humana, com seus medos, suas vicissitudes e desejos. Desejo que nos leva a buscar o que nos falta, ou que perdermos na aurora de nossas vidas. Desejo de retornar ao aconchegante paraíso uterino, do qual fomos arrancados ou expulsos violentamente. O primeiro grito de choro ao nascer, ainda ecoa em nós adultos, sob a forma de um assombro em se sentir finito.
Contudo, reconheço que a religião dos meus pais, na qual fui forjado, amoldou-me de tal forma, que não posso renunciar a descobrir um sentido para além-do-corpo, para além dessa vida imediata, pelo menos em sonhos. (rsrs)
Pode ser que eu ainda esteja muito moldado pela religião, mas acho complicado não crer na eternidade da consciência ou de que não haverá vida consciente após a morte.
De qualquer maneira, acho que seria errado absolutizarmos este conceito proibindo que se duvide. Aì, nestas horas, a descrença também se torna instrumento que nos ajuda a compreender a outra face da laranja e por que nos apegamos ainda bastante aos mitos, sejam estes cristãos, espíritas, judaicos, muçulmanos, hindus ou budistas.
Atualmente predomina no Judaísmo a ideia de reencarnação, a qual também é comum a outras tradições religiosas e antecede em milênios o espiritismo. Contudo, mesmo na ideia de ressurreição do corpo e que nega o ciclo das reencarnações, há algo em comum que é o desejo de se perpetuar e, em algum dia, alcançar uma vida permanente no Paraíso.
Nestas horas, aprecio bastante o livro de Eclesiastes, através do qual compreendemos a importância de se aproveitar plenamente a vida. Trata-se de um livro que nos remete para o aqui e agora e que, negando ou ignorando a existência de uma outra vida depois da sepultura, valoriza o momento presente.
Quantas vezes os homens deixar de celebrar a festa da vida por causa de preocupações com seu suposto karma ou de estar se distanciando de um céu cristão ou muçulmano. Atingir o Nirvana torna-se uma preocupação tão compulsiva na vida de muitos budistas que eles acabam sendo ingratos com a vida dada por Deus, como se preciassem escapar daqui o mais rápido.
Enfim, vejo na maioria das religiões uma desconexão com o presente por causa da dualidade que criam. Talvez se cada um buscasse meditar na bondade divina espalhada pelo Universo e que a vida e a matéria são boas, as coisas ficariam mais fáceis. Aí qualquer karma, cruz, voto ou sabe-se lá o quê vira algo leve de e carregar porque as situações difíceis passam a ser encaradas dentro de um estado de permanente graça.
Levi, este teu texto é uma aula sobre o tema. Já conhecia essa lado gnóstico de Jung e creio mesmo que falta ao cristianismo ortodoxo, resgatar muita coisa interessante da tradição gnóstica.
Eu tenho, porém, uma crítica ao gnosticismo que é a ideia de que a matéria é em si, má e consequentemente, o Jesus histórico(tema de meu interesse em pesquisas) nunca existiu como homem de carne e oso, já que ele apenas "aparentava" ter um corpo físico.
Mas posso admirar o contexto mítico e simbólico que há por trás de tal afirmação.
Quanto a afirmação de que
"C. G. Jung, tinha uma profunda simpatia pelo gnosticismo, por ver nele, não um conjunto de doutrinas, mas a expressão mitológica de uma experiência interior."
não seria toda tradição religiosa(mesmo as dogmáticas) uma expressão primeiro de uma experiência interior?
"não seria toda tradição religiosa(mesmo as dogmáticas) uma expressão primeiro de uma experiência interior?" - Eduardo
Boa pergunta!
Embora tenha direcionado-a ao Levi, gostaria de comentá-la.
De fato, a tradição pode mesmo ser desenvolvida a partir de concepções extraídas de experiências de pessoas. Até mesmo para tentar aproximar um número grande de pessoas ignorantes, tirando-as do obscurecimento total para uma formação religiosa e cultural.
Entretanto, a tradição pode também afastar o indivíduo da experiência, a partir do momento em que ela gera um engessamento se aliena no propósito cultural.
“não seria toda tradição religiosa (mesmo as dogmáticas) uma expressão primeiro de uma experiência interior?” (Eduardo)
Certo, Eduardo.
Os dogmas das religiões expressam uma experiência interior. Só que na tradição judaico-cristã, a tal da purificação se dá através de um mecanismo de projeção do que é percebido como “mau”, escuridão, ou treva, no indivíduo transgressor. E aí se entra no maniqueísmo de “santos” para o gozo eterno, e os hereges ou “pecadores” para a maldição eterna.
Enquanto a corrente cristã considera a queda do homem e o pecado original como responsáveis pelo estado atual do homem, Jung sustentava que a psique possui um sentimento íntimo de plenitude.
Jung viu no gnosticismo, um esforço no sentido da integração entre as duas metades, “boa” e “má”, que os ortodoxos teimam em separar.
Os gnósticos viam a origem do mundo como a ligação entre uma figura divina feminina (o éon) e uma figura masculina não-divina —, o que serviu de base para Jung formular a sua tese psicológica de que todo homem tinha dentro de si uma inconsciente imagem arquetípica feminina (Vide Animus e Anima )
O Evangelho Gnóstico de João dá um passo além, ao substituir a fonte do “mal” por Jesus. É Jesus quem convence Adão e Eva a comer da fruta que irá levar ao conhecimento do “mal”.
Rodrigo,
concordo com o que você disse de que
"Entretanto, a tradição pode também afastar o indivíduo da experiência
Aliás, normalmente não é isso mesmo o que ocorre?
Levi,
Eu concordo com a interpretação do mecanismo de projeção na religião cristã.
Mas o desejo de ver o "mal"(como entidade e não como indivíduos) sucumbir num inferno não é o desejo (bom?)de ver o "bem" vencer?
Mas aí é que entra a questão de que bem e mal não podem viver um sem o outro pois o bem sem o mal não pode ser bem contra o mal.
Por isso a preocupação de Javé de que Adão fosse como ele, conhecedor do "bem e do mal"? Ou seja, bem e mal faziam parte da divindade pelo menos como conhecimento?
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