25 março 2013

Para Que Serve a Páscoa

Um Sábado de Páscoa na Praia de Guarujá



Quarenta dias depois do Carnaval, é chegada a Páscoa para, com seus cinco dias de descanso, nos tirar da CRUZ da rotina estafante da batalha pela sobrevivência.

Que beleza (?) é ver magotes de crianças e adultos em supermercados, com um arco-íris de chocolates sobre suas cabeças e ao seu alcance —, um espetáculo deslumbrante de papeis brilhantes de cores as mais diversas a revestir ovos e coelhinhos sob uma algazarra celestial (ou infernal?).

E as praias, meu Deus? É a partir da próxima quinta feira (dia 28) que se inicia o espetáculo esfuziante e maravilhoso proporcionado pelo “Pai” daquele que poucos estão a relembrar a sua morte.  Quanto à bendita semana da santa alegria presente no mito da ressurreição de Cristo, famílias inteiras em suas barracas de praias usufruem às benesses de um Jesus, que veio trazer vidas com abundância. A comemoração vai até o domingo de páscoa, com muito sol, muitos petiscos, bastantes cervejas, refrigerantes, picolés e refrigerantes.

Mas vocês estão enganados se pensam que páscoa é só composta de chocolate e praia. As agências de viagens que o digam. Os cadernos de Turismo que vem sob a forma de encartes nos jornais diários em todas as cidades, nesta semana, trazem apelos divinos, tipo: “Nesta Páscoa Leve a Sua família a Passear” “Dicas Para Viajar na Semana Santa”

Ofertas para a confecção do mapa astral, consultas de astrologia, com Tarot, massagens de relaxamento e terapias holísticas, nessa época têm o seu boom.

Há também pacotes de atrações para os mais endinheirados e místicos que, com boa saúde, decidem enfrentar o frenesi louco dessa época na terra santa, tipo: “Conheça as Atrações das Três Faces Religiosas de Jerusalém ― essa agência, comercialmente e espiritualmente sábia, optou por agradar a “gregos e troianos”.

Claro é, que não podemos esquecer o comércio gospel na páscoa, com suas manchetes tipo: A Páscoa Está Chegando − Antecipe Seu Presente Aqui”

Para aqueles que são loucos por oração, há atrações imperdíveis como esta: “IBL Convida Cristãos para 70 horas de Oração”

Para quem gosta de forró e muita animação, a Páscoa de Caruaru -PE nesse 2013 está para arrebentar: teve início sábado passado (dia23) e vai até o domingo de ressurreição (dia 31), com três pólos de festança.

Para os solitários, os cansados pelo peso da idade, e para os que não gostam de sair de casa por preferir uma rede e um livro, há dicas excelentes, como esta: #Promoção: Sua Páscoa Mais Gostosa com Livros”.

Para os que, na páscoa, não conseguem deixar a telinha do computador e desejam que a páscoa venha ao seu encontro, há um “Canal Especial para Reflexões na Quaresma”

E o Sábado de Aleluia, meu Deus? Esse, não merecia tanta sandice e violência: Não agüento mais a “Malhação do Judas” nas ruas e o Besteirol Invangélico nas manhãs desse dia nas TVs do nosso impune país. Aos que adoram essas tradições ― o meu mutismo, pois reconheço que há gosto para tudo.

Para as criancinhas que frequentam a Escola Dominical da CPAD, e no intervalo dos rituais religiosos da páscoa  desejam dar um pulinho na internet, só encontrei essa dica: "Livro Animado da Páscoa" 

E a páscoa daqueles que não arredam o pé de casa, e de frente a telinha estão sempre a reclamar pelo fim da impunidade, por um mundo melhor e mais justo?  Para esses, o Google dá como dica esse interessante site: "dependênciainternet"

P.S.:

“Este é o melhor dos mundos possíveis” ― disse o personagem Pangloss ao seu discípulo, Cândido, no romance mais conhecido de Voltaire ― “O Otimismo”. Dessa célebre frase Voltaireana, faço um plágio para expor meu desejo aos confrades e amigos internautas: Onde você estiver -, esta é a melhor das páscoas.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 25 de março de 2013

21 março 2013

Duas Metáforas: Uma Endiabrada e Outra “Divina”





Estamos a um ano e dez meses da eleição presidencial, mas a disputa para presidência da República em 2014 já deu o ar de sua graça, aqui bem pertinho de minha cidade.

Dilma, ao entregar um conjunto residencial do Programa “Minha Casa Minha Vida” no início desse mês em João Pessoa ― Capital do Estado da Paraíba, usou uma expressão ou reforço de linguagem ― “Fazer o Diabo”, que Freud, vivo fosse, talvez a considerasse como um “ato falho”.

Como se sabe através da psicanálise, os “atos falhos” acontecem sempre quando o analisando em suas associações livres, perante o analista, deixa escapar algo escondido dos porões secretos de sua mente. Esses atos falhos ou lapsos evidenciam a força de desejos que estão reprimidos no inconsciente. Podem acontecer, por exemplo, na hora de um discurso ou de uma conversa informal. Sob o impacto da emoção ou do calor do momento, o guardião dos segredos da mente (a censura) relaxa, deixando passar para consciência os recalques do indivíduo. O sistema de defesa psíquico funciona como um vigia que impede que impulsos inaceitáveis da pessoa venham à tona. O estadista que faz uso do improviso, geralmente cai nas armadilhas do inconsciente ― são os ossos do ofício (rsrs).

Por trás das metáforas ditas se escondem um desejo reprimido – dizia Freud. Não sei, mas talvez a metáfora “Fazer o Diabo” no trecho abaixo, pinçado da fala inflamada da presidenta tenha a ver com o tal “ato falho” cansativamente estudado pelo pai da psicanálise. Se não vejamos:

“Nos podemos disputar eleição, nós podemos brigar na eleição, nós podemos fazer o Diabo quando é a hora de eleição. Agora, quando a gente está no exercício do mandato, nós temos que nos respeitar, porque fomos eleitos pelo voto direto do povo”. (Dilma)

O irônico Reinaldo de Azevedo em um artigo em seu blog, como era de se esperar, não deixou passar em brancas nuvens a metáfora endiabrada de Dilma, dita em bom som na Paraíba, e sapecou questionamentos sobre o que seria, em sua concepção, o “fazer o Diabo”, no contexto do discurso da presidenta, das quais republico algumas:

Seria preparar dossiês recheados de falsidades contra adversários?

• Seria mobilizar arapongas para espionar a vida alheia?

• Seria mentir descaradamente sobre a biografia dos adversários e sobre a sua própria?

Duas semanas e meia, após esse episódio, eis que Dilma se encontra em Roma para, num ambiente de solene espiritualidade ― assistir a posse do Papa Argentino, Francisco I.

Após a cerimônia de posse de sumo pontífice do Catolicismo, Dilma, ao ser provocada por um jornalista argentino na saída do Vaticano, saiu-se com essa pérola de resposta:

“Eu acho que vocês têm muita sorte. É um grande Papa. A Argentina está de parabéns. Agora a gente sempre diz: ‘o papa é argentino, mas Deus é brasileiro.’” (Folha de S. Paulo de 20/03)

Enquanto Dilma dizia em Roma que “Deus é brasileiro” aqui no Brasil do deus da mentira, contavam-se mais de vinte mortos soterrados por deslizamentos nos morros devido à inércia dos que fizeram o diabo com as vultosas verbas federais e não moveram uma palha sequer em obras de infra-estrutura após os soterramentos de ruas inteiras em 2011 na região serrana do Rio de Janeiro. Surrupiaram o dinheiro ao invés de encetar as obras prometidas na localidade e, quanto às moradias dignas previstas no papel, ficaram a ver navios, os que sobreviveram à tragédia de 2011, nessa região.

De lá de Roma, junto ao papa, que como São Francisco, optou pelos pobres, Dilma “fez o diabo” com a metáfora “Deus é brasileiro”: passou uma reprimenda nos habitantes dos morros culpando-os pela tragédia dos desabamentos. De forma grotesca transferiu para o povo pobre das encostas fluminenses a irresponsabilidade do governo federal que na região serrana nada fez desde a hecatombe de dois anos atrás, que deixou nada menos que 725 mortos. 

Mas vamos à fala de Dilma, direto de Roma, dando o recado do seu deus brasileiro (ou desculpa esfarrapada):

“Nós temos um sistema de prevenção, o problema é que muitas vezes as pessoas não querem sair. É uma situação muito difícil, porque choveu quase o tanto que chove um ano em certas regiões do país.” (Jornal Estado de São Paulo)

Infelizmente aqui, Freud, vivo fosse, não diria que Dilma cometeu um ato falho ou lapso; diria que ela exerceu um mecanismo de defesa, chamado de transferência ― que no ditado popular significa ― “tirar o corpo fora” (*).

(*) A Revista “Aventuras na História”, edição de março de 2011, traz o significado exato desse ditado:  “dizemos que a pessoa está tirando o corpo fora quando esse alguém finge que não sabe de nada  ou vacila em assumir a responsabilidade por algum ato”.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 20 de março de 2013

Site da Imagem: esmaelmorais.com

17 março 2013

A COPA É DO PAPA E DE DILMA


Desembarque  de Dilma em Roma para a posse do Papa


Futebol era sua paixão maior. O gol ilegal de Maradona em 1986, na copa do México, rotulado como efeito das “Mãos de Deus”, ficara gravado indelevelmente em sua memória. Desde pequeno era um torcedor fanático do San Lorenzo de Almagro. Logo nos primeiros dias de seu papado, deixou a cúria boquiaberta ao segredar que estava decidido quanto a sua primeira viagem internacional: seria ao Brasil, sem, no entanto, revelar que se daria justamente em junho de 2014. A seis meses do início da Copa, a decisão irrevogável tomada pelo Papa caiu, como uma bomba, em pleno Vaticano.

“Os cardeais que procurassem entendê-lo” ― teria afirmado em uma reunião onde, pasmem, foi até ventilado um escrutínio inédito na Capela Sistina, aos moldes do conclave: A fumaçinha branca saindo do velho telhado da Capela seria o sinal de “Habemus Papam in Copa

A notícia da visita do Papa ao Brasil, às vésperas da Copa do Mundo, fez o mundo político de Brasília estremecer.

A presidente Dilma submetida a um stress nunca dantes imaginado, emagrece a olhos vistos. O horizonte é realmente de densas nuvens negras: processos embargando obras nos estádios de futebol devido superfaturamento, manchetes de desvios de dinheiro público pululando em todos os jornais do país.  Para complicar tudo, em meio à Copa o STF estaria enfrentando o caso mais polêmico da nossa história recente: depois de passar pela Justiça de Minas Gerais e pelo STJ a denúncia de Marcos Valério de que Lula participou de forma ativa no mensalão, tinha sido aceita pela maioria dos ministros da suprema corte.

A presidenta inconsolável, nas longas noites de insônia, derrama-se em suas abluções: “Ah meu Deus, por que me deixei ardentemente ser arrebatada pelo meu Benfeitor político? Por que fui fraca e limitada ante o cálice embriagador do poder que, em minhas veias como um fogo gostoso e avassalador, me anestesiou o tirocínio? Por quê?

A bancada do governo reza para Dilma se sair bem. Quando seu médico a aconselha evitar as situações de stress, ela desabafa: “Como ter paz num fuzuê desses, doutor? As pesquisas não me ajudam quanto às eleições presidenciais que estão em cima, copa do mundo com obras incompletas, Lula sendo julgado, e por cima o Papa inventa de vir assistir o jogo final da Copa no Maracanã. Pense bem na enrascada, doutor, se o embate final for entre a Argentina e o Brasil? Por mim seria de portões fechados!. O médico não conteve o riso e ela até que esboçou um pálido sorriso num rosto visivelmente emagrecido: uma cena trágica e cômica.

A fim de se sentir mais aconchegada a presidenta aumenta para quarenta e quatro o número de ministros ao seu redor. Numa das reuniões ministeriais que sempre terminam em bate-bocas infrutíferos, manda confeccionar uma mesa oval bem maior que a do seu antecessor, haja vista a avalanche de ministros ao seu redor, que ela mesma, sequer sabe de cor o nome da metade deles.

Enquanto isso, os ministros do Planejamento, do Turismo, da Cultura, dos Esportes, do Minha Vida Meu Estádio, da Transparência em Gastos com a Copa, se reúnem para planejar um Papamóvel e um Trono ambulante movido a energia solar que deslizaria sobre cabos, partindo do Cristo Redentor aos estádios, favelas e catedrais do Rio, tipo, o bondinho do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro.

Para engrossar o caldo a bancada de deputados evangélicos, responsável pelo recém criado “Ministério do Brasil para Cristo”, pede para que o seu Papa (o presidente da Convenção de Pastores) tenha as mesmas regalias do líder maior da igreja católica, sob a ameaça de retirar seu apoio à reeleição de Dilma.

Quando as pesquisas, enfim, dão Aécio Neves, Tiririca e Dilma, como praticamente empatados ― a presidenta num ataque de nervos, grita para sua trupe, em uma das reuniões no palácio da Alvorada: “Será que vocês estão cegos?! Não estão vendo que estamos no mato sem cachorro!!!”

É quando todos correm para por panos quentes. Sob a batuta do ex-seminarista e eterno ministro da casa civil (há dez anos no poder), todos respondem em coro, como se tivessem previamente ensaiado:

“Fique tranqüila Dilma, o Brasil do ‘Bolsa Família’ está ao seu lado. A Copa do Mundo é sua e do Papa, e ninguém toma”.

Seus burros, a partida final da Copa não pode terminar empatada, ainda mais tendo Francisco I como torcedor n°1 da Argentina ― dispara a presidente, inconformada.

Enquanto isso, ao sul do Rio Grande do Sul, a eufórica Cristina Kirchner saltita de alegria: Viva o San Lorenzo, viva Messi, viva Francisco I.


Por Levi  B. Santos
Guarabira, 16 de março de 2013

Site da Imagem: meionorte.com

10 março 2013

Fumaça Preta―Branca―Preta...



Afresco  — Juízo Final —  Capela Sistina



Está tudo pronto para o início do conclave que escolherá o novo Papa. Ontem foram concluídos os reparos de instalação da chaminé no telhado da Capela Sistina ― famosa pelos afrescos que Michelangelo (1475 - 1564) pintou na parte interna da abóbada do templo, dizem, em posição muito incômoda. 

Por sinal, foi a pouco mais de três meses que ocorreu o aniversário dos 500 anos dos deslumbrantes painéis desse fenomenal pintor que, diga-se de passagem, deu muito trabalho ao Papa Júlio II: o serviço muito penoso e lento de Michelangelo lhe renderam umas bordoadas do cajado papal. O irascível artista foi instado a destruir seu painel com a "Origem a Criação", por causa de um Adão frontal completamente nu, com a genitália bem proeminente. Na ocasião, ele bateu o pé e disse: “Se não deixarem tudo como pintei, desisto em concluir a obra!”. Os cardeais, torcendo seus rostos, enfim, aquieceram. Conta-se que grande parte do cardinalato reagiu com rispidez, alegando a indignidade das pinturas, as quais continham anjos e apóstolos com partes pudendas vergonhosamente expostas. Fumaça preta para o endiabrado pintor! (rsrs)

Todo o mundo estará de olho na chaminé da Capela Sistina a partir de terça-feira (dia 12), quando se inicia o conclave (e suas escaramuças, disputas e guerras santas, etc) aguardando ansiosamente a saída da fumacinha preta ou branca.

Mas aqui pra nós: de onde os cardeais retiraram esse negócio de fumaça da discórdia e fumaça da concórdia, ou, sabe-se lá, do Cão e de Deus?!

Pedi auxílio ao Google sobre a simbologia da fumaça, mas só encontrei isso: “Fumaça negra ― significa que a igreja continua sem Papa; fumaça branca ― significa que existe Papa.”

Mas isso é muito pouco, e não aplaca a minha sede de curiosidade. Deve existir mais significado. Hoje é domingo, a revista Veja atrasou. Estou sem fazer nada, vou escarafunchar mais.

Viva!!! O bispo da diocese de Montenegro deu uma versão plausível para a fumaça, que não tem nada a ver com Mitologia, Escatologia ou Teologia. Diz ele:

“Séculos atrás a comunicação era muito precária. E como havia a necessidade de informar o andamento das votações no conclave, foi criada o sistema da fumaça preta e da fumaça branca. Os cardeais colocavam seus votos para serem queimados e davam um jeito de a fumaça sair preta (grifo meu ― pixe?), indicando dessa maneira a falta de consenso. E quando a escolha acontece, os votos são queimados, e com um processo próprio a fumaça se torna branca”.

Não me contento. Parodiando Shakespeare: há mais coisas escondidas entre o processo “fumaçal” e as quatro paredes da Capela que as minhas vãs palavras escritas nesse ensaio.

Deixo o Google pra lá, e pego meu dicionário de expressões e ditados populares. Finalmente, encontro uma expressão que me alivia e, cai, como uma luva, para explicar a tal da fumaça preta: “A Coisa Tá Pretaato denegrível, sujou, tá num beco sem saída, tá na sinuca de bico, situação insustentável” ― enfim, tudo que o antecessor, Bento XVI já cansou de falar aos quatro cantos da terra sobre a Igreja nos últimos dias. O nó é que mesmo com “a brancura final” da fumaça, o “fantasma de cor negra” vai continuar rondando o Vaticano por, sei lá quanto tempo.

Não foi à toa, que o sarcástico e inteligente Michelangelo dedicou a maior parte de seu tempo a pintar o maior painel da capela Sistina ― cuja foto está no topo desse ensaio ―, representação do JUÍZO FINAL ―, pairando sobre o altar como uma ameaçadora nuvem sobre as cabeças dos que irão escolher o novo Comandante espiritual e Senhor das finanças, esperanças e heranças do riquíssimo império do Vaticano.


   Por Levi B. Santos
Guarabira, 10 de março de 2013

Site da Imagem: sabercultural.com

06 março 2013

Sondadores de Arquivos




Não é preciso ir muito fundo para se constatar que a psicanálise se estrutura como um saber arqueológico. A arqueologia é a ciência que procura desvendar o passado daquilo que se tem ou que se vê como ruínas. Da mesma forma, a psicanálise escavaca o chão daquilo que se tem como a realidade do momento, à procura de um arquivo que está enterrado num longínquo passado.

Esta longa viagem que vai da superfície à profundidade do solo é realizada tanto pelo arqueólogo quanto pelo analista. O arqueólogo busca um passado, partindo das ruínas ao encontro de uma construção real que está soterrada, e o Psicanalista procura, pela fala e ausculta do sujeito, um passado ou arquivo inconsciente, que foi recalcado nos primórdios da história do sujeito. As ruínas, como partícula de algo maior em oculto, nos dois casos, formam a realidade imaginada por aqueles que vivem na superfície.

Para mostrar a intrínseca relação entre a Arqueologia e a sua nova ciência denominada Psicanálise, Freud, reporta-se ao romance “Gradiva (aquela que avança) do Alemão Wilhelm Jensen (1837 ―1911), no qual o personagem, “Hanold”, se detém diante de uma imagem em gesso de uma moça que foi soterrada pelo vulcão em Pompéia. O arqueólogo procura decifrar a imagem dessa encantadora jovem levantando os pés do chão, como estivesse a reviver a impressão do outro, nele mesmo.

Jacques Derrida, no último capítulo de seu livro ― “Mal de Arquivo” (Editora Relume Dumará), recorreu a uma interessante parábola que Freud fez, correlacionando os métodos e objetivos em tudo semelhantes às duas instâncias científicas (a Psicanálise e a Arqueologia), que passo a transcrever:

“Imaginemos que um pesquisador em viagem chegasse a uma região pouco conhecida, na qual um campo de ruínas com restos de muros, fragmentos de colunas, tabletes com signos gráficos apagados e ilegíveis, despertasse seu interesse. Ele poderia se contentar em olhar o que está exposto à luz do dia, depois inquirir os habitantes, talvez semi-bárbaros, moradores das redondezas sobre o que a tradição lhes permitiu saber da história e da significação destes restos de monumentos; em seguida registrar as informações e continuar viagem. Mas poderia também proceder de outra maneira; poderia ter trazido consigo picaretas, pás e enxadas e determinar aos habitantes que trabalhassem com estas ferramentas no campo de ruínas, removendo o cascalho e, a partir dos restos visíveis, pôr a descoberto o que estava soterrado. Se o sucesso recompensar seu trabalho, os achados se comentarão por si sós; os restos de muros pertencem aos muros de um palácio ou de uma tesouraria; a partir dos restos de colunas, um templo se completa; as inscrições encontradas em grande números, bilíngues, em alguns casos felizes, revelam um alfabeto e uma língua, e a decifração e a tradução destes, dão esclarecimentos insuspeitados sobre os acontecimentos das primeiras eras em memória das quais os monumentos foram edificados”.

Como se sabe, Freud foi um artista em tomar fatos da literatura para empreender suas fascinantes analogias psicanalíticas. No romance “Gradiva”, o soterramento de Pompeia serve de metáfora para explicar os recalques soterrados, mas ainda vivos, no porão do inconsciente; a escavação do sítio das ruínas seria a análise empreendida pelo analista.

No romance de Jensen, o personagem Hanold é alvo de persistentes sonhos delirantes com o espectro da enigmática Gradiva e seus passos ondulantes sempre para frente. Numa de suas alucinações o arqueólogo se viu em plena Pompeia do vulcão Vesúvio:

“Era curioso constatar como tudo que havia sido outrora a vila de Pompeia tomava um outro aspecto, ao mesmo tempo em que se operava o êxodo. Não era certamente uma cidade viva, mas nesse momento parecia se petrificar em uma rigidez cadavérica. No entanto, daí emanava qualquer coisa que dava a impressão de que a morte se punha a falar, embora não de uma maneira perceptível aos ouvidos humanos. É verdade que aqui e ali ressoava uma espécie de murmúrio, que parecia sair das pedras...” (Gradiva ― Uma Fantasia Pompeiana – página 41)

A proposta de Freud, em sua escavação arqueológica da psique, é deixar os fantasmas do sujeito falar até chegar o momento de exorcizá-los. Quando “as pedras falam” é sinal de que o longo processo de escavação tornou mais ou menos transparente o que estava soterrado. Quando não se chega ao chão que havia antes, a escavação ou análise pode se tornar interminável: são os ossos do ofício de quem promete abrir arquivos enferrujados e profundamente enterrados.

De tudo, fica evidente que o arquivo primitivo procurado incessantemente pelo arqueólogo e o analista estão escondidos nas profundezas do próprio arquivista. Seria o desejo irreprimível de retorno à origem, uma dor da pátria, uma saudade de casa, uma nostalgia do retorno ao lugar mais arcaico do começo absoluto? ― pergunta o pensador, Jacques Derrida, insinuando que todos sofrem do “Mal de Arquivo” ― que em suma pode ser traduzido como “a impaciência absoluta de um desejo de memória”.

Há quem ache extremamente perigoso mexer em arquivos soterrados (esquecidos) na mente humana. Na ânsia de remover entulhos profundamente enterrados, o risco de cortar os fios condutores que transmitem os sonhos e animam o artista em sua arte, é muito grande.

Na cibernética, quando um arquivo deixa de funcionar, diz-se que ele foi contaminado por um vírus. Nesse campo da ciência já existe “ante-vírus” para evitar que arquivos guardados há muito tempo travem ou fiquem sem responder.

A ciência está evoluindo assustadoramente. Talvez um dia, o grande computador humano (o cérebro) possa ter os arquivos da memória primeira do ser humano restaurados na íntegra. Mas aí ninguém pode prever se o indivíduo depois de devassado em suas entranhas será o mesmo de antes.

Dando asas à imaginação:

Será que os futuros arqueólogos, um dia, retirarão o sopro de mistério que embala a nossa vida, ao desarquivar aquilo que deveria sempre permanecer intocável, como era o propósito sagrado na fábula do fruto proibido da árvore do Éden de que fala o livro de Gênesis? Como ficará a vida, se os sondadores de arquivos anularem a capacidade de sonhar, sentir saudades, fantasiar e brincar de Deus?  

Por Levi B. Santos
Guarabira, 06 de março de 2013  

  Site da Imagem: boasnoticias.clix.pt

01 março 2013

Voltaire e o Umbigo Santo




O leitor desavisado que olhar de relance o título dessa postagem vai com certeza pensar que se trata de mais uma bizarrice do malfadado evangelho da superstição e da prosperidade que cresce em nosso meio numa dimensão geométrica, e que faz a festa dos blogs de “humor cristão”. Que nada, esses relatos foram escritos por Voltaire, há três séculos e meio (1762). Não há como negar verossimilhanças das narrativas desse filósofo e crítico do cristianismo com o que acontece hoje sob o pano de fundo da Igreja de Deus. Voltaire em seu “Tratado de Tolerância” ― Editora Martins Fontes (página 116) diz algo dolorosamente atual, no capítulo XX (Da Utilidade de Manter o Povo na Superstição):

“Quando os homens não têm noções corretas da divindade, as ideias falsas as substituem, assim como nos tempos difíceis trafica-se com moeda ruim quando não se tem a boa. O pagão deixa de cometer um crime, com medo de ser punido pelos falsos deuses; o malabar teme ser punido por seu pagode. Onde quer que haja uma sociedade estabelecida, uma religião é necessária: as leis protegem contra os crimes conhecidos, e a religião contra os crimes secretos”.

“A superstição filha da religião subjugou por muito tempo a terra inteira. Os senhores feudais faziam acreditar os seus vassalos que São Genou curava a gota e que Santa Clara curava os olhos enfermos. As crianças acreditavam em lobisomem e os adultos no cordão de São Francisco. O número de relíquias era incontável. [...] Sabe-se que quando o bispo de Noailles mandou retirar e lançar no fogo a suposta relíquia do umbigo de Jesus, toda a cidade Chalôns moveu-lhe um processo; mas ele teve coragem e devoção, e acabou convencendo os habitantes da região de que era possível adorar Jesus Cristo em espírito e em verdade sem ter seu umbigo na Igreja. Deixou-se de acreditar que bastava a oração dos trinta dias à Virgem Maria para obter tudo o que se queria para pecar impunemente. Enfim a burguesia começou a suspeitar que não era Santa Genoveva quem trazia ou parava a chuva. Os monges ficaram espantados de que seus santos não fizessem mais milagres; e, se os escritores da ‘Vida de São Francisco Xavier’ voltassem ao mundo, não ousariam escrever que este santo ressuscitou nove mortos,   que foi visto ao mesmo tempo no mar e em terra, e que, tendo seu crucifixo caído no mar, um caranguejo o veio trazê-lo de volta”.

Mas o sarcástico, ambivalente e inteligente, Voltaire, adoça a língua ferina, bem no final do seu ensaio. Em consonância com os ditados populares ― “uma na ferradura e outra no cravo” (que aqui eu inverti a sua ordem), e o velho adágio “Morde e assopra”, ele termina sua fala com duas emblemáticas interrogações, talvez dirigidas a ele mesmo; inquirições que podem (por que não?) ser endereçadas a nós também:

 “Mas de todas as superstições, a mais perigosa não é a de odiar o próximo por suas opiniões? E não é evidente que seria ainda mais sensato adorar o santo umbigo, o santo prepúcio, o leite e o manto da Virgem Maria, do que detestar e perseguir seu irmão?”

O umbigo e o prepúcio, para quem não sabe ainda, foram os pedaços mais procurados e venerados do mártir do Gólgota ―, objeto de disputas cristãs tanto na França de Voltaire, quanto na Itália e na Alemanha do século XVIII. Numa sábia decisão, o papa Clemente V mandou picotar o “umbigo de Jesus” em três partes, para satisfazer os cristãos de Constantinopla, de S. José do Latrão e da França. Mas houve quem batesse o pé reivindicando um umbigo inteiro.

Ah meu caro “herege”, Voltaire! Se você soubesse que passados três séculos e meio desse imbróglio umbilical/prepucial de sua era, a disputa pelo espólio de Cristo continua mais viva do que nunca entre as facções cristãs: Uma tem até um canal de TV para mostrar um Cristo fatiado ao gosto do freguês.

Guarabira, 01 de março de 2013

Imagem: sinapseslink.wordpress.com