Não
é preciso ir muito fundo para se constatar que a psicanálise se estrutura como
um saber arqueológico. A arqueologia é a ciência que procura desvendar o
passado daquilo que se tem ou que se vê como ruínas. Da mesma forma, a
psicanálise escavaca o chão daquilo que se tem como a realidade do momento, à
procura de um arquivo que está enterrado num longínquo passado.
Esta
longa viagem que vai da superfície à profundidade do solo é realizada tanto pelo
arqueólogo quanto pelo analista. O arqueólogo busca um passado, partindo das
ruínas ao encontro de uma construção real que está soterrada, e o Psicanalista procura,
pela fala e ausculta do sujeito, um passado ou arquivo inconsciente, que foi recalcado
nos primórdios da história do sujeito. As ruínas,
como partícula de algo maior em oculto, nos dois casos, formam a realidade
imaginada por aqueles que vivem na superfície.
Para
mostrar a intrínseca relação entre a Arqueologia e a sua nova ciência
denominada Psicanálise, Freud, reporta-se ao romance “Gradiva” (aquela que avança) do Alemão Wilhelm Jensen (1837 ―1911), no
qual o personagem, “Hanold”, se detém diante de uma imagem em gesso de uma moça que
foi soterrada pelo vulcão em Pompéia. O arqueólogo
procura decifrar a imagem dessa encantadora jovem levantando os pés do
chão, como estivesse a reviver a impressão do outro, nele mesmo.
Jacques
Derrida, no último capítulo de seu livro ― “Mal de Arquivo” (Editora Relume
Dumará), recorreu a uma interessante parábola
que Freud
fez, correlacionando os métodos e objetivos em tudo semelhantes às duas
instâncias científicas (a Psicanálise e a Arqueologia), que passo a transcrever:
“Imaginemos que um pesquisador em viagem chegasse a uma região pouco
conhecida, na qual um campo de ruínas com restos de muros, fragmentos de
colunas, tabletes com signos gráficos apagados e ilegíveis, despertasse seu
interesse. Ele poderia se contentar em olhar o que está exposto à luz do dia,
depois inquirir os habitantes, talvez semi-bárbaros, moradores das redondezas
sobre o que a tradição lhes permitiu saber da história e da significação destes
restos de monumentos; em seguida registrar as informações e continuar viagem.
Mas poderia também proceder de outra maneira; poderia ter trazido consigo picaretas,
pás e enxadas e determinar aos habitantes que trabalhassem com estas
ferramentas no campo de ruínas, removendo o cascalho e, a partir dos restos
visíveis, pôr a descoberto o que estava soterrado. Se o sucesso recompensar seu
trabalho, os achados se comentarão por si sós; os restos de muros pertencem aos
muros de um palácio ou de uma tesouraria; a partir dos restos de colunas, um
templo se completa; as inscrições encontradas em grande números, bilíngues, em
alguns casos felizes, revelam um alfabeto e uma língua, e a decifração e a
tradução destes, dão esclarecimentos insuspeitados sobre os acontecimentos das
primeiras eras em memória das quais os monumentos foram edificados”.
Como
se sabe, Freud foi um artista em tomar fatos da literatura para
empreender suas fascinantes analogias psicanalíticas. No romance “Gradiva”, o soterramento de Pompeia
serve de metáfora para explicar os recalques soterrados, mas ainda vivos, no
porão do inconsciente; a escavação do sítio das ruínas seria a análise empreendida
pelo analista.
No
romance de Jensen, o personagem Hanold é alvo de persistentes sonhos
delirantes com o espectro da enigmática Gradiva e seus passos ondulantes
sempre para frente. Numa de suas alucinações o arqueólogo se viu em plena
Pompeia do vulcão Vesúvio:
“Era
curioso constatar como tudo que havia sido outrora a vila de Pompeia tomava um
outro aspecto, ao mesmo tempo em que se operava o êxodo. Não era certamente uma
cidade viva, mas nesse momento parecia se petrificar em uma rigidez cadavérica.
No entanto, daí emanava qualquer coisa que dava a impressão de que a morte se
punha a falar, embora não de uma maneira perceptível aos ouvidos humanos. É
verdade que aqui e ali ressoava uma espécie de murmúrio, que parecia sair
das pedras...”
(Gradiva
― Uma Fantasia Pompeiana – página 41)
A
proposta de Freud, em sua escavação arqueológica da psique, é deixar os
fantasmas do sujeito falar até chegar o momento de exorcizá-los. Quando “as pedras falam” é sinal de que o longo
processo de escavação tornou mais ou menos transparente o que estava soterrado.
Quando não se chega ao chão que havia antes, a escavação ou análise pode se
tornar interminável: são os ossos do ofício de quem promete abrir arquivos
enferrujados e profundamente enterrados.
De
tudo, fica evidente que o arquivo primitivo procurado incessantemente pelo
arqueólogo e o analista estão escondidos nas profundezas do próprio arquivista.
Seria o desejo irreprimível de retorno à
origem, uma dor da pátria, uma saudade de casa, uma nostalgia do retorno ao
lugar mais arcaico do começo absoluto? ― pergunta o pensador, Jacques
Derrida, insinuando que todos sofrem do “Mal de Arquivo” ― que em suma pode ser traduzido como “a impaciência absoluta de um desejo de
memória”.
Há
quem ache extremamente perigoso mexer em arquivos soterrados (esquecidos) na
mente humana. Na ânsia de remover entulhos profundamente enterrados, o risco de
cortar os fios condutores que transmitem os sonhos e animam o artista em sua
arte, é muito grande.
Na
cibernética, quando um arquivo deixa de funcionar, diz-se que ele foi
contaminado por um vírus. Nesse campo da ciência já existe “ante-vírus” para
evitar que arquivos guardados há muito tempo travem ou fiquem sem responder.
A
ciência está evoluindo assustadoramente. Talvez um dia, o grande computador
humano (o cérebro) possa ter os arquivos da memória primeira do ser humano
restaurados na íntegra. Mas aí ninguém pode prever se o indivíduo depois de
devassado em suas entranhas será o mesmo de antes.
Dando asas à
imaginação:
Será que os futuros arqueólogos, um dia, retirarão o sopro
de mistério que embala a nossa vida, ao desarquivar aquilo que deveria sempre
permanecer intocável, como era o propósito sagrado na fábula do fruto proibido da
árvore do Éden de que fala o livro de Gênesis? Como ficará a vida, se os sondadores
de arquivos anularem a capacidade de sonhar, sentir saudades, fantasiar e brincar
de Deus?
Por
Levi B. Santos
5 comentários:
Levi, excelente explanação. Porem a psicanalise descreve um outro aspecto do funcionamento de nossa psique o qual seria, o aspecto econômico, que por força da minha inquietação, mais me intriga. A pouco busquei abordar um tema em meu blog que se refere ao altos índices de homicídios, que nos coloca entre os países com mais assassinatos no mundo. Como explicar essa, a principio incompatível, mistura de alegria e covardia? Existira um mecanismo econômico de compensação por trás desse paradoxal fenômeno.
Caro Gabriel
A agressividade faz parte da natureza humana. Ao escavar a história do homem iremos perceber que esse instinto está presente, por exemplo, em um bebê que morde o mamilo da mãe de forma agressiva quando não se sente satisfeito.
O instinto de agressividade é importante como elemento estruturante da psique e não pode ser considerado negativo, desde que seja canalizado para a construção e criatividade e não para destruição. Mas como fazer isso em uma cultura que prima obsessivamente pela violência do Princípio do Prazer a todo custo, para justificar o gozo narcísico do indivíduo?
Em nossa cultura o que mais se ver é gente ressentida. No ressentimento está embutida uma acusação moral contra o outro que goza os prazeres que o masoquista não se permite. O desejo de vingança e de eliminação do outro está presente, de forma sutil, quando o ressentido se queixa, constantemente, que está sendo prejudicado ― uma modalidade disfarçada de culpar o outro pelo seu fracasso.
Parece um paradoxo, mas o ressentido é aquele que tenta evitar confrontar-se com o seu EU em si. Ele sente gozo ao culpar o outro pelos prejuízos inerentes à sua própria covardia.
Levi, belo artigo!!
Sua pergunta ao final nos faz pensar. Acabei de ler um romance interessante ("Delírio") que narra uma sociedade americana futurista onde os cientistas descobrem que o grande mal da humanidade é o amor. Então, criou-se uma técnica de intervenção cirúrgica no cérebro para que o sentimento do amor fosse de vez expurgado das pessoas. A operação era obrigatório quando o jovem fazia 18 anos.
As pessoas "consertadas" viviam então em estado de quase marasmo sentimental; jamais amavam a ninguém; as relações humanas se tornaram frias, mas ao mesmo tempo "seguras"; os índices de criminalidade caíram vertiginosamente; a sociedade americana enfim, encontrou a paz. Mas será que encontrou mesmo?
É, Edu
O que nos romances e no cinema, é ficção hoje, pode ser a realidade de amanhã, onde cérebros com implantes de chips regularão as nossas reações interações. Aí você programa suas emoções, seus medos e seus sentimentos saudosos e religiosos a hora que bem entender.
Mas isto não é coisa, nem para nossa geração, nem para a dos nossos filhos e netos. (rsrs)
"Há quem ache extremamente perigoso mexer em arquivos soterrados (esquecidos) na mente humana. Na ânsia de remover entulhos profundamente enterrados, o risco de cortar os fios condutores que transmitem os sonhos e animam o artista em sua arte, é muito grande."
Parabenizo esta cautela. A interpretação de quem ouve quase sempre é mesclada com os seus próprios fantasmas, e é ai que reside o grande perigo de tentar curar a si mesmo ao analisar o outro.
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