30 outubro 2013

As Exéquias do Excêntrico Bioanalista

  

O laboratório era a sua segunda casa. A bem dizer, quase todos habitantes da pequenina cidade já tinham passado por suas mãos. Respeitavam-no, pois era a a quem recorriam; a quem entregavam seu sangue, seus excrementos sólidos e líquidos a ser examinados minuciosamente.

Na tarde cinzenta e fria de seu sepultamento ninguém ousou dizer uma palavra sequer. O sacerdote esperava que alguém se pronunciasse, antes do féretro descer à cova, mas nenhum tomou essa iniciativa. Aliás, nada podiam fazer, pois estavam perplexos, como que atacados por uma sisudez mórbida, como se uma aura paralisante tivesse caído abruptamente sobre seus nervos e músculos. Uma mistura de perplexidade e tristeza transparecia em todos os olhares.

O silêncio que reinou minutos antes do corpo do cientista descer à sepultura, talvez fosse resultado do clima de extrema religiosidade da população a colidir com a personalidade paradoxal do douto senhor. Talvez, os seus defeitos estivessem a anular as suas virtudes, impedindo os discursos fúnebres, que geralmente se nutrem do lado “bom” do sujeito. O certo é que um clima de temor caiu sobre os que estavam ao pé de sua última morada. Uns temiam que surgisse algum antipático a falar, ali, sobre as fraquezas e as excentricidades do defunto; outros receavam que as palavras de elogios ao morto, pudessem desaguar em um sonoro “não é verdade!”.

Não é que uma das garotas ali presente balbuciava ao ouvido da outra! É que o falecido tinha encontrado tantas variedades de vermes em suas fezes que, ao apresentar-lhe o resultado, chamou-a humoradamente de “verminosa” ― termo compreendido pela examinada como um xingamento.

Enfim, o doutor era o paradoxo em pessoa ― o que não é novidade nenhuma, pois é exatamente a contradição que caracteriza o humano. Por vezes, pessoas que compareciam a seu laboratório para lhe fazer perguntas sobre resultados de exames, recebiam como resposta, o silêncio, ou, quando muito, o lembrete: “Não abra o envelope, seu médico é quem vai informar o que você tem. Denotando todo o seu ser paradoxal, às vezes, quando inquirido insistentemente sobre o que tinha dado nos exames, disparava: Huuuuumm! Parece uma infecção aguda”.

Não encontrando fórmulas para dizer a verdade em toda sua plenitude sobre a vida do velho analista, naquele cair de tarde, a maneira melhor, mais simples e sincera que encontraram, foi não emitir opiniões sobre ele. Na falta de expressões que abarcassem toda a verdade sobre o falecido, resolveram aproveitar o silêncio ou o vazio de palavras do momento para recordar fatos pitorescos e engraçados da vida do doutor ― homem que conhecia muito bem o que estava oculto no sangue e nos excrementos de todos que o acompanhavam em sua última caminhada.

As últimas palavras do sacerdote confirmaram o que preconizam os filósofos e estudiosos da alma humana: “Não existe olhar neutro ― ele está sempre carregado de subjetividades nas relações que construímos uns com os outros”.

O enunciado bíblico “... e as suas obras o sigam” recitado pelo pároco no final do ritual fúnebre ―, mudara instantaneamente o ar dos velhos amigos de infância do analista a caminho de sua última morada. A estranheza denunciada pelos olhos deles, talvez se devesse a palavra “obra”. Este termo parece ter sido a senha para que viessem à tona fatos longínquos de suas vidas. É de se pensar que chegaram às suas mentes, lembranças reprimidas do tempo em que depositavam as latinhas com os dejetos de seus filhos e netos sobre o balcão de madeira do velho laboratório a fim de serem examinados. 
“Eu vim trazer a obra de meu menino para o senhor examinar”  era assim que seus ex-colegas de infância, com o olhar cabisbaixo e carregado de vergonha, se dirigiam ao homem sisudo, de avental branco, que vivia sempre cercado de tubos de ensaios e um antiquado microscópio bem ao centro de uma grande mesa de madeira de lei cheirando a clorofórmio. 

Depois do enterro de um ente querido, comumente, há sempre pessoas que têm o dom de contagiar o ambiente com suas traquinices, como que para quebrar a monotonia de fundo melancólico instaurada em ocasiões como essa. O certo é que ao descerem a ladeira do cemitério, rumo às suas casas, riram muito a respeito do paralelismo lingüístico entre “fezes” e “obras”(*). Até confidenciaram entre si que o falecido poderia (por que não?) ter sua função re-exercida na eternidade.


(*) Há na simbologia mítica uma relação intrínseca entre os significantes “fezes” e “obras”. No Dicionário Psicanalítico de Símbolos, as fezes representam a primeira manifestação criativa e concreta do poder individual; na Alquimia esses excrementos são considerados a matéria prima que acaba se transformando em ouro.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 30 de outubro de 2013

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26 outubro 2013

A Velha Senhora “Opinião Pública”




Quão insuportável é a vida sem os palpites, sem as críticas, sem as afirmações ou avaliações que cotidianamente emitimos sobre tudo e sobre todos. Parece, que a todo instante, somos imperceptivelmente ceifados para alimentar as catracas de uma mega-máquina, denominada opinião pública”.

Iludo-me, ao pensar que as soluções e idéias que elaboro são genuinamente minhas. Se os conceitos, palavras e experiências que formam a minha atual biblioteca mental têm suas raízes fincadas lá atrás, lá no tempo de meus antepassados, então como dizer que a opinião que estou a emitir é minha, somente minha? Refletindo bem, no meu desenvolvimento, eu apenas metamorfoseio o que em essência já existe ou sempre existiu.

O sábio roqueiro, Raul Seixas, tinha razão ao se classificar como uma “Metamorfose Ambulante”tema de uma de suas antológicas canções: “Eu vou lhe desdizer / Aquilo tudo que eu lhe disse antes / Eu prefiro ser / Essa metamorfose ambulante / Do que ter aquela velha opinião / Formada sobre tudo”.

Esta semana, debrucei-me sobre um grosso volume de 860 páginas ― Textos Caribenhos ― uma coletânea de crônicas, contos e ensaios, escritos por Gabriel García Márquez, entre 1948 e 1952. Entre os diversos fragmentos que li, um, despertou-me maior atenção. Achei bem instigante a parte inicial desse texto, por versar, exatamente, sobre essa velha senhora, denominada opinião pública. O autor colombiano de “Cem Anos de Solidão” ― obra memorável que lhe deu o prêmio Nobel de Literatura em 1982 ―, assim, começou o seu ensaio:


“A opinião pública ― de acordo com a opinião geral ― é uma senhora que passa a vida dizendo algo, pensando algo a respeito de algo ― e na maioria dos casos muito acerca de nada e nada acerca de muito ― e cujo divertimento habitual consiste em decifrar os inumeráveis e ociosos quebra-cabeças que a imprensa lhe oferece todos os dias. Quando a opinião pública sai para fazer compras, geralmente não compra nada, mas os jornalistas a seguem para saber seus conceitos a respeito do preço dos víveres, e a seguem os estadistas para saber qual a sua maneira de pensar a respeito da preferência eleitoral das maiorias; e a seguem os estatísticos para conhecer seu ponto de vista acerca do coeficiente de mortalidade; o senhor Gallup a segue com seu permanente interesse profissional, para saber em que grau está funcionando seu aparelho digestivo. Certo dia a opinião pública foi ao consultório de um psiquiatra, teve necessidade de aguardar várias vezes, fez-se tarde e explodiu a guerra mundial. Quando os jornalistas a assediaram, ela respondeu com a maior naturalidade: ‘se a humanidade foi à guerra é por que enlouqueceu’. Apesar da longa espera na sala do psiquiatra, naquela tarde a opinião pública estava de bom humor”.


Não é preciso dizer que a velha senhora denominada opinião pública, é quem, de há muito, vem mostrando o “caminho” que a maioria deve seguir para se sentir “confortada”; essa senhora, de forma avessa, vem substituindo o Senhor do Salmo 23 das Escrituras Sagradas. A deusa “opinião pública” está a dizer aos quatro cantos da terra: “Eu sou a tua senhora e nada te faltará”.


Por Levi B. Santos               
Guarabira, 26 de outubro de 2013

Site da Imagem: blogdoparrini.blogspot.com

19 outubro 2013

BIÓGRAFOS versus BIOGRAFADOS ― Um Duelo Interessante




Uma polêmica em nossas terras repletas de leis vem dando manchete para tudo quanto é canto na imprensa falada, escrita e televisiva. O embate, no âmbito do direito, joga as leis de constituição federal contra o Código Civil. A Constituição Federal diz que “... a expressão da atividade intelectual é livre, independentemente de censura. A manifestação do pensamento e a informação não sofrerão qualquer restrição”. Por outro lado o Código Civil diz que “... a divulgação de escritos e o uso da imagem de alguma pessoa necessita de autorização prévia, se atingir a sua honra ou se a destinação da obra for comercial. Em suma: a “intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas são invioláveis”.

Pelo que venho lendo na imprensa sobre as queixas dos biógrafos e dos biografados que não autorizaram suas biografias, os problemas não são apenas de ordem financeira. Eles envolvem a questão da censura: aquilo que o autor deseja deixar em oculto para o público, por considerar de foro íntimo. Ou seja, pode-se divulgar o lado “bom” do biografado, mas não o lado “mal”.

 Freud, explica bem essa paradoxal natureza humana, ao fazer, mais ou menos, essa constatação: “O Ego jamais vai destruir o Superego. Para o sujeito viver equilibradamente terá que fazer um acordo com Ele.”

Reportemo-nos ao ano de 2007 para entender esse imbróglio ― caso da biografia de João Havelange contada no livro “Jogo Duro” ― em que o jornalista, Ernesto Rodrigues (biógrafo), para publicar a sua obra, fez uma espécie de acordo prévio, que primava pela não revelação de assuntos desconfortáveis do senhor biografado (Vide link).

Para o biografado, a não revelação dos fracassos e das fraquezas parece ser algo que deve permanecer intocável. No meu tempo de ginasiano, era assim: a publicação do lado avesso dos nossos heróis da República que nunca houve, era proibida, a fim de não macular suas imagens perante o povo e, consequentemente, impedir que fossem eternamente lembrados.

Mas vamos ao que interessa e que a imprensa tanto discute no momento:

O cantor Roberto Carlos, que conseguiu sustar na justiça a sua biografia não autorizada, fundou a associação "Procure Saber", da qual fazem parte Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Milton Nascimento e Erasmo Carlos. Os integrantes desse grupo entendem que a publicação de suas biografias implicaria em invasão de privacidade.

Em entrevista à Folha de São Paulo (ontem – dia 18) Chico Buarque afirmou que “o cidadão tem o direito de não querer ser biografado”. Para reforçar seu argumento ele radicalizou: “Se for levar isso ao extremo, o sujeito é obrigado a deixar invadirem sua casa, fazerem fotografias dele de cueca, sem poder recorrer.” Como nem todos os Buarques pensam da mesma forma, a ex-ministra da Cultura do governo LulaAna Maria Buarque de Hollanda, no caderno “Ilustrada” da Folha de São Paulo do dia 18 (ontem), expôs a sua opinião: “Imagine se para escrever sobre D. Pedro I tivéssemos de obter autorização da família imperial e de descendentes [...]. [...]Respeito a opinião do Chico, mas nem sempre concordamos em tudo. Se isso for adiante, não poderemos falar sobre mais nada. Qualquer assunto público sempre vai esbarrar na privacidade. [...] privacidade só pode ser evocada se houver uma ofensa. Se você tem uma vida pública, é difícil querer manter. Não dá para exigir que para falar do suicídio de Getulio Vargas, tenha de ter autorização da família” ― concluiu.

O fato de Chico e Ana serem rebentos do grande historiador Sérgio Buarque de Hollanda (1902 ― 1982) e se encontrarem em lugares opostos, por si só, é um evidente sinal de que esse tema polêmico vai render muito. E tome discussão teórica sobre liberdade de expressão a rolar por baixo da ponte.

Pelo visto, a novela dos biógrafos versus biografados pode desaguar no pleno do STF. O ministro Joaquim Barbosa, nesta quarta feira (dia 14), já se posicionou contra o recolhimento das biografias não autorizadas (vide link). Pelo andar da carruagem tudo ficará para depois da Copa, quando Ricardo Lewandowski, em novembro de 2014, estará assumindo o comando da nave dos embargos infringentes.

Estejam todos de olhos abertos, pois, para o lado que o PT pender, poderá a balança da deusa Thémis também se inclinar.



Por Levi B. Santos
Guarabira, 19 de outubro de 2013



Site da Imagem: veja.abril.com.

10 outubro 2013

O Trágico e Cômico de Nossa Herança Histórica

D. João VI e a Cerimônia do “Beija mão”


O lado cômico e trágico da História do Brasil, nunca me foi mostrado nos bancos escolares que freqüentei. Só muito depois de minha formação acadêmica, através de muitas releituras e pesquisas, é que entrei em contato com fatos risíveis e pitorescos de nossa História. Por que os patrióticos professores de História de décadas passadas não revelaram o avesso ou o outro lado da moeda? Queriam eles, evitar macular os brios e a exaltação patriótica tão em voga naquele tempo? Talvez, resida aí, a razão pela qual foi escondida de nós, alunos da década de 1960, o lado demasiadamente humano dos nossos míticos heróis.

Nos tempos que estudava fatos de nossa História, jamais poderia imaginar que, para dar um tom mítico a um suposto corte de laços de nossa colônia com Portugal, fosse forjada a história do “Grito do Ypiranga”, dado por um D. Pedro I que, desidratado por uma forte diarréia, mal podia falar e sair da posição incômoda em que se encontrava. Também não sei por que cargas d’água, os velhos professores de nosso passado histórico, não me contaram que Deodoro da Fonseca nunca foi um republicano.

Foi através da leitura da trilogia de Laurentino Gomes, que pude conhecer o lado avesso ou a versão não oficial do velho Marechal, que foi tirado abruptamente de um sofá, onde de camisola, se consumia em uma grave crise asmática, sem forças para vestir a própria farda e encenar o que o seu coração não queria: desrespeitar a Monarquia e o velho imperador a quem tanto devotava respeito e admiração. Pouco mais tarde, com Floriano Peixoto, a república que nunca houve, desembocaria em golpes militares, ditaduras e conchavos que trariam os monarquistas de novo ao topo do poder.

Estamos mais seguros ou mais inseguros com o desnudamento dos patrioteiros? Saudosos ou realistas por saber que os patriotas são homens de carne e osso, que manejam seu idealismo conforme a sua imagem e semelhança? 

Pergunta-se: quando o nosso sistema político não foi uma falácia? Nas palavras recentes do Ministro Barroso (o novato do TRF ― segundo seu par, Marco Aurélio), o nosso sistema partidário é um engodo. Só faltou ao ministro, dizer que isso não é novidade. Faltou dizer que essa herança maldita vem sendo transmitida desde os tempos de Dom João VI que, ao aportar em nossas terras, deu início ao “toma lá dá cá”, eternizado entre nós? Faltou dizer que se mudam as roupagens dos personagens, mas o cenário fisiológico permanece o mesmo.

 As legendas de aluguel que inundam o país para adquirir facilidades, ante um povo inerte, é uma prova de que nada mudou em nossa república. Não custa nada avivar a nossa memória histórica: Conta-se que, para não serem dizimados pelas tropas do imperador francês, dom João VI e seus asseclas fugiram mar adentro, para nossos trópicos. A falta de reação do órfão povo português foi tamanha, que em Abrantes ― cidade tomada de Portugal para erigir o quartel general de Napoleão Bonaparte ―, a quem perguntasse como iam as coisas, respondia-se de forma bem tranqüila: “Está tudo como d’antes no quartel d’Abrantes.”

O escritor de “Carlota Joaquina”, João Felício dos Santos (1911 - 1989) e os historiadores/jornalistas, Eduardo Bueno e Laurentino Gomes, entre outros, nos últimos anos, nos legaram um cabedal de informações não oficiais que os professores técnicos e rígidos de nossas primeiras aulas de civismo, talvez caíssem para trás, gritando “blasfêmia! Blasfêmia!” ―, se tivessem a oportunidade de ao menos sonhar com o que sabemos, hoje, dos subterrâneos da história da colônia “mãe gentil”.

Tenho pra mim, que foi o defensivo ufanismo cívico do tempo de estudante ginasiano, a causa de não se ter podido historiar aquilo que deu errado, os fracassos, as situações cômicas, os casos pitorescos de nosso passado de povo submisso e adepto daquilo que ficou em nosso passado recente, conhecido como a “Lei do Gerson” (um comercial dos cigarros Vila Rica - da Souza Cruz, transformado, internacionalmente, em sinônimo de fisiologismo): Nessa torpe propaganda, um famoso futebolista dá o matreiro conselho: “faça como eu, que gosto de levar vantagem em tudo!”. Enfim, o famoso “jeitinho brasileiro” tão cantado e decantado em conversas de botequim, crônicas jornalísticas, romances e rodas políticas.

No tempo em que me esforçava para decorar fatos da história do Brasil, uma afirmação, como a que o Ministro do Supremo, Joaquim Barbosa, fez recentemente, seria coisa totalmente impensável: “A independência do Brasil foi um conchavo entre as elites portuguesas e elites brasileiras; a proclamação da República foi um movimento em que o povo esteve completamente excluído, sem saber que tinha havido “mudança de regime” ― disse o Presidente do STF para uma plateia de estudantes. (Vide vídeo).

O Jornalista Eduardo Bueno, no seu livro ― “Uma História” ―, para evidenciar que o brasileiro não tem memória, faz uma emblemática observação: “Lula se anunciando como o pai do povo no horário eleitoral é uma repetição de Getúlio Vargas.”

Hoje, a desmitologização não atinge só o campo da religião. O brasileiro da pós-modernidade deseja também que esse fenômeno ocorra com seus supostos heróis de 200 anos atrás. Uma prova disso foi a tiragem de 2.000.000 de exemplares de “1808”, primeiro volume da Trilogia (“1808” “1822” “1889”), lançado em 2010 por Laurentino Gomes ― obra que permaneceu durante dois anos como o livro mais lido, numa lista de best-sellers que incluía as maiores livrarias do país.


P.S.:
Estou terminando a leitura do antológico 1889” ― último livro da trilogia de Laurentino Gomes ―, lançado em Julho de 2013, que discorre sobre os bastidores da Proclamação de uma República que nunca houve.


Para editar as suas três obras, o autor leu cerca de 200 livros. Caso o leitor(a) queira ter uma idéia do mergulho meticuloso empreendido por ele dentro de Nossa História, que lhe consumiu anos de um árduo trabalho, é só clicar nos links dos quatro blocos de vídeos, abaixo relacionados, que compõem a sua recente entrevista (dia 09 de setembro) concedida ao programa “Roda Viva” da TV Cultura: 

                      


Por Levi B. Santos
Guarabira, 10 de outubro de 2013


Site da Imagem: portaldoprofessor.mec.gov

02 outubro 2013

Do Talmude à Psicanálise




Apesar de Sigmund Freud ter resistido em associar a psicanálise ao judaísmo, o que podemos notar, é que ressonâncias da educação fornecida por seu pai, Jacob Freud ― profundo estudioso do Talmude ―, permeiam todo o seu pensamento e suas idéias.

Mas o que tem a ver o Talmude com a Psicanálise?

O Talmude, tanto o de Jerusalém quanto o da Babilônia, tem um processo interpretativo muito parecido com o usado por Freud. O psicanalista, Renato Mezan, chega a afirmar em seu livro ―”Psicanálise, Judaísmo, Ressonâncias” ― Editora Civilização Brasileira (pág. 153 - 154) ― que, “a psicanálise herdou do judaísmo, nada mais nada menos do que a técnica de interpretação, simplesmente transpondo o seu objeto do texto bíblico para o funcionamento psíquico. A atenção prestada pelos talmudistas à letra do texto bíblico encontraria seu correspondente na atenção prestada pelo psicanalista, nos mais íntimos detalhes do discurso do seu paciente”.

A maneira que o Talmude aborda o texto bíblico em seu nomadismo interpretativo multifacetado, a psicanálise, igualmente, sem se deter na literalidade da história do analisando, tem no vácuo do que não se encontrava dito na narrativa do paciente o seu modus operandi.

Freud chocou o mundo do seu tempo ao mostrar que o homem é interiormente ambíguo. Aquilo que ele afirma como sua verdade consciente é paradoxal ao conteúdo do inconsciente que jaz sob camadas profundas no seu aparelho psíquico. Enfim, a psicanálise, ao explorar os sentimentos paradoxais que residem na alma humana, reflete o talmudismo que, nas re-escrituras e re-interpretações dos sábios rabinos, revive um movimento contínuo de desconstruções, onde o dito e o não dito aparentemente contrários, coexistem harmonicamente.

A escritora e professora de psicanálise da UFRJ, Betty B. Fuks, em seu livro “Freud e a Judeidade” ― Editora Zahar (pag 132 - 134), diz: “O Talmude, tanto quanto a Psicanálise, está comprometido com a pluralidade de sentidos e a produção de pensamentos. [...] O que se vê, pois, é que a tradição judaica de lembrar não consiste apenas e essencialmente na preservação de uma herança ou em uma transmissão mecânica da memória, mesmo que, na aparência, seja esta a impressão. Há uma dinâmica interpretativa no Talmude. A expressão talmúdica, Zakhor significa fazer da memória uma aventura de historicidade criativa  a partir de um conjunto de traços a serem re-escritos permanentemente a cada geração, por todos os sujeitos, mas sempre individualmente e diferencialmente. Em cada época, em cada geração, o leitor interpreta subjetivamente aquilo que lhe é transmitido, preservando as estruturas tradicionais da transmissão e assegurando-lhes continuidade”.

Tanto o método talmúdico quanto o método psicanalítico comungam de um mesmo olhar: ambas as instâncias reconhecem a relação do passado com o presente conjugadas na história afetiva do indivíduo. Séculos antes de Freud ler os sintomas, os sonhos e os lapsos, os antigos talmudistas já praticavam o exercício de permutar as letras do texto sagrado, segmentá-lo, introduzir espaçamentos, para fazer emergir uma interpretação sempre outra, transformando por completo o sentido do escrito ― Betty Fucs em “Freud e a Judeidade” (pag. 132)

Na observação dos seus pacientes, Sigmund Freud, fazia uma espécie de exercício, em tudo, idêntico ao que faziam os estudiosos do Talmude, na medida em que inter-relacionava de forma imbricada o tempo passado e o presente, evidenciando que a escritura psíquica é composta de inscrições que se repetem e se recriam durante o decorrer das épocas sucessivas da vida.

Segundo Betty Fucs, “foi na tradição da leitura talmúdica que Lacan encontrou referências para pensar o modelo de transmissão da descoberta freudiana. O Javé de Lacan é um Deus habitado pelas paixões humanas” ― escreveu o talmudista e psicanalista, Gérard Haddad, em seu livro, O Pecado Original da Psicanálise.

Ao contrário do budismo, em que é recomendado que se purifique das três paixões fundamentais ― o amor, o ódio e a ignorância ― Javé não é desprovido de nenhuma delas[...]. [...] A psicanálise, talvez não seja concebível como nascida fora dessa tradição (hebraica). Freud nasceu nela e, como sublinhei, insiste em que só tem propriamente confiança, para fazer avançar as coisas no campo que descobriu, nesses judeus que sabem ler há muitíssimo tempo, que vivem ― é o Talmude ― da referência a um texto, afirmou Jacques Lacan, em seu seminário ― “O Avesso da Psicanálise”.

O fato é que ninguém pode negar que nessas duas instâncias (Talmude e Psicanálise) sobrevivem o fascínio da escuta e a magia do falar contínuo de palavras singulares aparentemente dúbias, mas percebidas como únicas para cada ser humano. O Talmude e a Psicanálise apesar de possuir roupagens diferentes têm em comum a genial arte de interpelar o presente do ser humano sem descolá-lo do passado, como bem resumiu Renato Mezan, nessa frase:

“Trata-se de abrir um espaço para pensar o lado obscuro e o terrível da natureza humana, sem fazê-lo desaparecer, mas sem tampouco sucumbir a ele”.


Por Levi B. Santos

Guarabira, 02 de outubro de 2013