Túmulo
de Dostoiévski – São Petersburgo - Rússia
O
dia dedicado aos mortos, neste ano, caiu numa segunda feira,
proporcionando aos vivos um feriadão em pleno verão. Embora, muitos
tenham descambado para um “descanso” de três dias em fazendas,
nas praias sob um sol escaldante, em retiros espirituais, em hotéis,
bares comunitários, ou mesmo por falta de opção terem que permanecer no
deserto de suas próprias casas, creio que uma boa parte da população
deve ter reservado esse espaço de tempo para, tradicionalmente,
visitar os túmulos dos entes queridos, de saudosa memória.
Eu,
particularmente, não costumo ir ao cemitério na festa destinada aos
mortos, principalmente pelo fato de me sentir incomodado com o
intenso alvoroço reinante no local. É que em ambiente dessa
natureza não consigo concentrar meu pensamento na memória do ente
querido que partiu para outra, e, por mais que me esforce, é como se
estivesse participando do concerto de uma orquestra sinfônica no
meio de uma barulhenta feira.
Acho
melhor ter o silêncio por companhia e pensar nos que se foram, longe
do barulho da multidão e dos ambulantes a oferecerem com toda a
força de seus pulmões velas, grinaldas, ramos de flores, misturado
a picolés, refrigerantes, salgadinhos e outras extravagantes
guloseimas. Não são raros os casos de encontros casuais entre
amigos que raramente se veem em torno do túmulo do morto
homenageado. Surpreendidos com o inédito da ocasião, os vivos
começam a puxar o fio das conversas sem fim guardadas ou esquecidas
na poeira do tempo, e, só depois de rumarem para uma cervejinha bem
geladinha em um barzinho da periferia da cidade, é que vão se dar
conta de que esqueceram o principal ―
lembrar com reverência seus mortos.
Mas
me permitam que eu explique o que tem a ver esse meu falatório com o
título que encabeça o ensaio ―
“Dostoiévski Vai ao
Cemitério”:
Fiódor
Dostoiévski (1821
–
1881), autor dos clássicos “Crime
e Castigo”, “O
Idiota” e “Diários
do Subsolo”, é um dos maiores romancistas russos, e
existencialista mundialmente conhecido pela sua crítica mordaz às
práticas religiosas de seu tempo.
Esboçarei
aqui uma sinopse do magistral conto ―
“BOBÓK”
―, no qual Dostoiévski
faz a figura de um bêbado sofredor de alucinações, na suposição
de que os mortos, longe do mundo moral que os detinha quando vivos
eram, podiam agora, por de lado qualquer tipo de vergonha e contar
entre eles seus casos escabrosos, de acordo com o preceito bíblico
que diz ― “Deus não é
Senhor dos mortos...”. Em
analogia a
essa referência bíblica, no
seu último romance ―
“Os Irmãos Karamazóv”, o
autor russo cunhou
a célebre expressão: “Se Deus Não Existe, Tudo é
Permitido”. Expressão essa,
não corroborada pelos analistas, pois se Deus (o Inconsciente, o
Involuntário dostoieviskiano) não existe, nada é permitido. Mas,
sem mais delongas, vamos a sinopse prometida:
Ivan
Ivánitch, sem mais nem menos, resolveu acompanhar um enterro. Já
era noite quando os amigos e familiares do defunto se retiraram do
cemitério. Ivan, por se encontrar visivelmente cansado e
embriagado, intencionou descansar e dormir ali mesmo no cemitério,
sobre a laje fria de uma sepultura. De repente, o bêbado começa a
ouvir vozes abafadas vindas dos túmulos ao seu redor. Os mortos se
identificavam e conversavam entre si, como se a consciência humana
continuasse a existir por algum tempo depois da morte. Diferente das
condições terrenas, tinham agora, total liberdade de falar de
segredos e causos, nunca revelados quando estavam vivos:
“Mas por
enquanto eu quero é que não se minta. É só o que quero, porque
isso é o essencial. Na terra é impossível viver e não mentir,
pois vida e mentira são sinônimos; mas, com o intuito de rir, aqui
não vamos mentir. Aos diabos, ora, pois o túmulo significa alguma
coisa! Todos nós vamos contar em voz alta as nossas histórias já
sem nos envergonharmos de nada. Serei o primeiro de todos a contar a
minha história […]. Abaixo as cordas, e vivamos esses dois meses
na mais desavergonhada verdade.” [Bobók
―
página 35]
Em um
determinado momento, nauseado pelo forte odor vindo de corpos em
decomposição, Ivan, involuntariamente
dá um sonoro espirro, o bastante para calar a conversa ou prosa
entre os mortos, ficando todos em um silêncio sepulcral. Acordado de
sua alucinação, o bêbado, enfim, conjectura com seus botões:
“Não acho
que tenham sentido vergonha de mim: haviam resolvido não se
envergonhar de nada! Esperei uns cinco minutos e … nem uma palavra,
nem um som. Também não dá para supor que tenham temido ser
denunciados à polícia; porque o que a polícia pode fazer neste
caso? Concluo involuntariamente
que, apesar de tudo, eles devem ter algum segredo desconhecido
dos mortais, e que eles escondem cuidadosamente de todo mortal.”
[Bobók ―
página 37].
Nesse
feriadão, pelo menos na imaginação, Dostoiévski, em sua
história carregada de metáforas, nos leva ao cemitério para
refletir mais sobre o Outro ―
razão maior do nosso VIVER.
Sobre
o conto “Bobók”,
interpretando pelo avesso o dito de Dostoiévski, diria,
tempos depois, o famoso psicanalista, Jacques Lacan, que fez a
releitura das obras de Freud:
“Se
Deus não existe, nada é permitido”.
Lacan
interpreta ou assimila Deus,
como o Outro ou o “Grande
Outro”, simbolizado
pelo espirro
nos delírios de Ivan, que faz calar os “mortos-vivos”,
habitantes dos obscuros porões de nossa Psique ― tal qual um espelho a refletir a nossa verdade
envergonhada.
Por
Levi B. Santos
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