01 novembro 2015

Dostoiévski Vai ao Cemitério


Túmulo de Dostoiévski – São Petersburgo - Rússia


O dia dedicado aos mortos, neste ano, caiu numa segunda feira, proporcionando aos vivos um feriadão em pleno verão. Embora, muitos tenham descambado para um “descanso” de três dias em fazendas, nas praias sob um sol escaldante, em retiros espirituais, em hotéis, bares comunitários, ou mesmo por falta de opção terem que permanecer no deserto de suas próprias casas, creio que uma boa parte da população deve ter reservado esse espaço de tempo para, tradicionalmente, visitar os túmulos dos entes queridos, de saudosa memória.

Eu, particularmente, não costumo ir ao cemitério na festa destinada aos mortos, principalmente pelo fato de me sentir incomodado com o intenso alvoroço reinante no local. É que em ambiente dessa natureza não consigo concentrar meu pensamento na memória do ente querido que partiu para outra, e, por mais que me esforce, é como se estivesse participando do concerto de uma orquestra sinfônica no meio de uma barulhenta feira.

Acho melhor ter o silêncio por companhia e pensar nos que se foram, longe do barulho da multidão e dos ambulantes a oferecerem com toda a força de seus pulmões velas, grinaldas, ramos de flores, misturado a picolés, refrigerantes, salgadinhos e outras extravagantes guloseimas. Não são raros os casos de encontros casuais entre amigos que raramente se veem em torno do túmulo do morto homenageado. Surpreendidos com o inédito da ocasião, os vivos começam a puxar o fio das conversas sem fim guardadas ou esquecidas na poeira do tempo, e, só depois de rumarem para uma cervejinha bem geladinha em um barzinho da periferia da cidade, é que vão se dar conta de que esqueceram o principal  lembrar com reverência seus mortos.

Mas me permitam que eu explique o que tem a ver esse meu falatório com o título que encabeça o ensaio “Dostoiévski Vai ao Cemitério”:

Fiódor Dostoiévski (1821 1881), autor dos clássicos “Crime e Castigo”, “O Idiota” e “Diários do Subsolo”, é um dos maiores romancistas russos, e existencialista mundialmente conhecido pela sua crítica mordaz às práticas religiosas de seu tempo.

Esboçarei aqui uma sinopse do magistral conto BOBÓK, no qual Dostoiévski faz a figura de um bêbado sofredor de alucinações, na suposição de que os mortos, longe do mundo moral que os detinha quando vivos eram, podiam agora, por de lado qualquer tipo de vergonha e contar entre eles seus casos escabrosos, de acordo com o preceito bíblico que diz Deus não é Senhor dos mortos...”. Em analogia a essa referência bíblica, no seu último romance “Os Irmãos Karamazóv”, o autor russo cunhou a célebre expressão: “Se Deus Não Existe, Tudo é Permitido”. Expressão essa, não corroborada pelos analistas, pois se Deus (o Inconsciente, o Involuntário dostoieviskiano) não existe, nada é permitido. Mas, sem mais delongas, vamos a sinopse prometida:

Ivan Ivánitch, sem mais nem menos, resolveu acompanhar um enterro. Já era noite quando os amigos e familiares do defunto se retiraram do cemitério. Ivan, por se encontrar visivelmente cansado e embriagado, intencionou descansar e dormir ali mesmo no cemitério, sobre a laje fria de uma sepultura. De repente, o bêbado começa a ouvir vozes abafadas vindas dos túmulos ao seu redor. Os mortos se identificavam e conversavam entre si, como se a consciência humana continuasse a existir por algum tempo depois da morte. Diferente das condições terrenas, tinham agora, total liberdade de falar de segredos e causos, nunca revelados quando estavam vivos:

Mas por enquanto eu quero é que não se minta. É só o que quero, porque isso é o essencial. Na terra é impossível viver e não mentir, pois vida e mentira são sinônimos; mas, com o intuito de rir, aqui não vamos mentir. Aos diabos, ora, pois o túmulo significa alguma coisa! Todos nós vamos contar em voz alta as nossas histórias já sem nos envergonharmos de nada. Serei o primeiro de todos a contar a minha história […]. Abaixo as cordas, e vivamos esses dois meses na mais desavergonhada verdade.” [Bobók página 35]

Em um determinado momento, nauseado pelo forte odor vindo de corpos em decomposição, Ivan, involuntariamente dá um sonoro espirro, o bastante para calar a conversa ou prosa entre os mortos, ficando todos em um silêncio sepulcral. Acordado de sua alucinação, o bêbado, enfim, conjectura com seus botões:

Não acho que tenham sentido vergonha de mim: haviam resolvido não se envergonhar de nada! Esperei uns cinco minutos e … nem uma palavra, nem um som. Também não dá para supor que tenham temido ser denunciados à polícia; porque o que a polícia pode fazer neste caso? Concluo involuntariamente que, apesar de tudo, eles devem ter algum segredo desconhecido dos mortais, e que eles escondem cuidadosamente de todo mortal.” [Bobók página 37].



Nesse feriadão, pelo menos na imaginação, Dostoiévski, em sua história carregada de metáforas, nos leva ao cemitério para refletir mais sobre o Outro razão maior do nosso VIVER.

Sobre o conto “Bobók”, interpretando pelo avesso o dito de Dostoiévski, diria, tempos depois, o famoso psicanalista, Jacques Lacan, que fez a releitura das obras de Freud:

Se Deus não existe, nada é permitido”.

Lacan interpreta ou assimila Deus, como o Outro ou o “Grande Outro”, simbolizado pelo espirro nos delírios de Ivan, que faz calar os “mortos-vivos”, habitantes dos obscuros porões de nossa Psique ― tal qual um espelho a refletir a nossa verdade envergonhada.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 01 de novembro de 2015

Link da Imagem: https://pt.wikipedia.org/

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