“Negar Para Não Sofrer"
Essa
arte eu aprendi logo cedo
Aprendi
desde os tempos das primeiras letras
Negar
para não sofrer
Já
adulto, agindo como o débil aluno de outrora
Fiquei
tenso, de rosto avermelhado
Quando
Ela me perguntou:
“Estás
a esconder algo de mim?”
Neguei
para não sofrer.
[Levi
B. Santos]
Os
filhos de uma cliente minha compareceram ao consultório com a finalidade de receber o
resultado anátomo-patológico de uma biópsia de colo uterino que,
40 dias atrás, eu tinha realizado em sua mãe. No recinto, ao notar a ausência da senhora que tinha se
submetido ao procedimento preventivo, perguntei de imediato para a
filha que, pelo jeito de se portar, denunciava ser a responsável
pela paciente.
―
Por
que não trouxe sua mãe para eu explicar o que deu no resultado do
seu exame?
Antes
de me responderem, a tríade de irmãos de sangue, em silêncio,
confabularam pelos olhos, fazendo com que eu percebesse que algo de
suma importância estavam combinando. O perfil físico da filha
demonstrava claramente que tinha mais idade que seus dois irmãos.
Tomada por um certo nervosismo, evidenciado pelo esfregar constante
das suadas mãos, fez sinal de que ia me falar em segredo, ao mesmo
tempo que cochichava ao ouvido de minha auxiliar, para que a mesma se
ausentasse da sala por um pouquinho de tempo.
― Doutor,
a gente quer saber se o exame de minha mãe deu “aquela
doença”(o sempre impronunciável, câncer)! Nós
todos, de comum acordo, viemos aqui para dizer ao senhor que nossa
mãe não pode saber que tem essa maldita doença ― disparou a
filha, meio trêmula e com olhos esbugalhados.
O
senhor promete, diante de Deus e da Virgem santíssima não revelar
nada sobre sua doença? É por amor e para que
ela não sofra tanto que resolvemos tomar esta decisão ―
arrematou a filha, ansiosa pela minha aquiescência.
― Tudo
bem, tudo bem! Se é assim que vocês desejam, serei comedido em
minhas elucidações ― respondi bem a vagar, como quem caminha
em terreno escorregadio.
Ocorrências
como a que acabei de narrar, não são raras e têm me levado a
acuradas reflexões. Nas minhas longas leituras, tenho procurado
explicações sobre esse mecanismo psíquico da “Negação” que,
por ser de natureza inconsciente, é projetado no OUTRO (ente
querido), objeto de nosso suposto amor. Se pudéssemos entender que a
criança que fomos um dia continua encarnada no fundo obscuro dos
porões de nossa mente, iríamos por certo concluir que a
determinação tomada pela família em esconder a doença fatal de
sua progenitora se enquadraria naquilo que os estudiosos da Psique
denominam “Auto-engano”, ou seja, quando racionalizamos que se
deve esconder de um ente querido nosso a doença grave de que é
portador, sob a alegação de que é para evitar seu sofrimento, na
verdade, estamos, por um processo de identificação com o doente,
nos deslocando inconscientemente no sentido de evitar o nosso próprio
desprazer. Não era assim que agíamos quando na tenra infância,
para não sofrer castigos, evitávamos contar aos nossos pais as
maldades e atos considerados proibitivos ou vergonhosos que
praticávamos junto aos coleguinhas de escola?
Acessando
as memórias de nossa infância iremos, fatalmente, perceber a
quantidade de fatos maus ou desabonadores que escondíamos dos nossos
genitores para não sofrer sua reprovação dura que, quase sempre,
resultava em surras ou privação de determinadas liberdades. Às
vezes, nossos pais até que procuravam adivinhar o que lá no íntimo
escondíamos, quando em casa, depois de voltar da escola, aparecíamos
cabisbaixos e desconfiados pelo canto das paredes. “Você está
com cara de quem está escondendo algum malfeito na
escola, seu moleque? Desembuche logo! ― inquiria o pai ou mãe
com um ar grave. E para não sofrer negávamos tudo com a cara mais
deslavada do mundo.
O
“mal” ou doença daquela senhora, segundos os filhos, ela não
poderia saber, por hipótese nenhuma. Resolvi nada interpor sobre o
acordão engendrado entre eles. Fiquei a perguntar a mim mesmo: se
pelo menos, os filhos da desditosa mulher, hoje já bem maduros,
pudessem entender que o mal praticado e ocultado da mãe ou do pai,
no tempo de sua meninice, sob forma de um sentimento culposo, estava
naquela ocasião a aflorar. Se eu pudesse, pelo menos, aclarar o que
estava por trás de suas racionalizações (ou desculpas
esfarrapadas), usando o pouco do que tenho aprendido na área da
Psicologia. Em criança, por diversas vezes, para não sofrer,
enganei meus pais. E agora, estava eu diante de adultos-crianças que numa linguagem defensiva esboçavam as mesmas reações de um
passado que não mais lembravam. Por terem ludibriados seus pais na
aurora de suas vidas, os filhos sentimentalmente interligados, de
forma unânime, estavam ali tramando em meu consultório apagar ou
esconder a sombra de um passado, que o mal incurável de sua terna
mãe fizera emergir de suas próprias entranhas psíquicas
indestrutíveis.
Eu
sabia que de nada adiantaria entrar no terreno das elaborações de
cunho psicanalítico, tentando argumentar que por trás do
imediatismo aparentemente honesto e justo das resoluções que por
ora estavam tomando, algo gravado indelevelmente nos arquivos da vida
mental infantil, tinha sido reativado, fazendo com que agissem
daquele modo.
Pascal,
admirável e profundo pensador do século XVII, já dizia que havia
no coração razões que a própria razão desconhecia. Mas será
que numa consulta de meia hora de duração eles poderiam compreender
como a mente funciona? Poderiam eles intuir que os sentimentos
da antiga criança que, para não sofrer escondia da mãe ou do pai àquilo que considerava um mal ou coisa altamente reprovável, estavam ali reverberando em
suas atitudes e gestos aparentemente generosos?
Será
que eles acreditariam que não estavam tentando proteger a sua mãe,
mas sim, tentando se resguardar da intensa ansiedade provocada por um
sentimento ilhado em suas profundezas psíquicas que diante daquela
situação conflitante, voltara a incomodar?
Na
música popular brasileira, o entrelaçar da filosofia e da
psicologia exprime ou resume maravilhosamente tudo que eu tentei
explicitar nesse curto ensaio. É o que mostra esse pedacinho de
apenas duas linhas da emblemática canção “Revelação”
de Clésio e Clodô, magnificamente interpretada pelo cantor cearense
Fagner:
“Quando
a gente tenta/De toda maneira/Dele se guardar/Sentimento
ilhado/Morto, amordaçado/Volta a incomodar”.
Por
Levi Bronzeado dos Santos
Guarabira,
12 de novembro de 2015
2 comentários:
Procuro ensinar ao meu filho que ele pode falar para os pais qualquer coisa de errado que ele fizer. Que se ele contar, não será castigado (o maior castigo para ele atualmente é ficar sem assistir Netflix). Mas eis que me deparo com a esquiva do moloque. Sábado ele grudou uma massinha de modelar no cabelo e eu lhe disse para não fazer mais isso, e ele com carinha de "menino consciente" falou "tá bom, papai". Eis que ontem, fez a mesma coisa e a mãe o surpreendeu pendurado na pia tentando tirar a massinha do cabelo... apreensivo disse à mãe: "não diz pro papai por que ele vai brigar comigo" rs
Quanto às ordens severas do Pai, a mãe põe tudo a perder, não é Eduardo?
No mais das vezes, a mãe vira confidente e advogada do filho(pecador) perante o Pai, como no Auto da Compadecida do saudoso Ariano Suassuna:
“A COMPADECIDA - Isto, João!
Tenha coragem, não desanime, que eu estou aqui, torcendo por você...” (rsrs)
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