28 janeiro 2016

Narciso e a Imagem Ameaçadora do Outro






O Narcisismo das Pequenas Diferenças” foi um conceito formulado por Freud, para ressaltar o sentimento angustiante que toma o ser humano quando se relaciona com um ser que lhe é completamente diferente. Narciso, personagem mítico da Grécia antiga, encantado com sua imagem refletida em um lago, afoga-se ao tentar abraçá-la e beijá-la. A história de Narciso, como metáfora, nos revela, acima de tudo, “o quanto os homens são, por natureza, incapazes de amar aquilo que não reflete sua própria imagem”. Tudo que de nós difere é percebido como uma ameaça. Parece mais um instinto de defesa sermos avassalados pelo desejo de uniformização. O heterogêneo ameaça a homogeneidade de nossa família, de nosso grupo, de nossa cultura. Na nossa formação psíquica, desde a mais tenra idade, o que mais aprendemos foi recalcar aquilo que, na concepção dos nossos pais, pastores e mestres, não nos dizia respeito.

O cantor e compositor da MPB, Caetano Veloso, em sua antológica canção SAMPA, descreve de forma poética o seu narcisismo. A música, retrata a sua estranheza com a megametrópole Paulista que, a primeira vista, não espelhava a sua velha São Salvador na Bahia. O choque que sentiu ao entrar em contato com a desconhecida e ameaçadora, São Paulo, o fez exprimir-se dessa forma:

É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi/ Da dura poesia concreta de tuas esquinas/ Da deselegância de tuas meninas/ Quando eu encarei frente a frente não viu o me rosto/ Chamei de mau gosto o que vi/ De mau gosto mau gosto/ É que Narciso acha feio o que não é espelho.”

Reza a mitologia grega que, Liríope, mãe de Narciso, nutria por ele uma grandiosa expectativa. O filho idealizado, belo e perfeito enchia de prazer o os olhos de Liríope que, por se desconhecer interiormente não podia reconhecer a realidade interna de Narciso. Em menor grau ou maior grau, temos todos um Narciso que, de forma inconsciente, nos foi legado por nossos ancestrais.

Lembro que ainda bem pequeno quando saía de casa para brincar com os outros coleguinhas de rua, minha mãe falava enfaticamente: “Não se junte com os moleques de rua!”. O que verdadeiramente, lá no seu íntimo, sentia ao dar-me esse conselho? No seu dizer, que também era o de outras mães do mundo religioso de então, queria resguardar-me do mundo. Numa análise mais profunda, o desejo ancestral que lhe consumia, era o de não perder a imagem que no filho construíra para si. A imagem que tinha dos mirins marginalizados funcionava como uma espécie de ameaça a sua identidade e, por tabela, a do filho. Os outros, os deserdados dos caminhos do Senhor (os popularmente cognominados “camumbembes”), ameaçavam o filho criado e educado na igreja, a imagem e semelhança dos pais. Que se entenda: naquele tempo havia um rígido muro subjetivo que separava os “convertidos” dos “incrédulos”, cujos pais, rebeldes não comungavam da mesma fé —, tempo em que o narcisismo religioso corria mais solto.

Pena que naquela época ainda não sabíamos traduzir a metáfora bíblica do livro de Gênesis: “Não farás imagens para ti”. Como disse certa vez, o psicanalista de alma judaica, Jacques Lacan, sobre a proibição bíblica de se forjar o Deus das imagens: Se esta proibição tem um sentido, é o de que as imagens são enganadoras”.

No imaginário céu das ideias e dos contos d'além em que flutuamos há muito o que se decifrar pelo avesso daquilo que se tem como real. É preciso refletir sobre o que há de latente nas entrelinhas dos nossos “ditos”, para entender por que muito dos nossos recalques são projetados naquele que difere de nós. Parafraseando Caetano Veloso: achamos feio aquilo que não é nosso espelho. Não é à toa que se diz: ele é o bode expiatório da família!” ―, esse OUTRO ameaçador tão bem simbolizado na personagem “Geni” da cantada e decantada música Geni e o Zepelim , do grande expoente da MPB, Chico Buarque de Hollanda.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 28 de janeiro de 2016

3 comentários:

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Excelentes reflexões! Interessante que, sendo o sentimento narcísico algo talvez natural da espécie (ou um mal social?), prejudica o desenvolvimento humano. Continua sendo um desafio para educadores de hoje formar jovens mais abertos ao diferente até porque o próprio pai ou professor carrega em si seus sentimentos de narcisismo. E maior que o muro da religiosidade seria o apartheid social. Quantas mães de classe média não querem afastar o filho do convívio com a criança pobre da favela?!

Levi B. Santos disse...

Como você bem frisou, Rodrigo, o narcisismo é um sentimento natural da espécie humana. Todos nós carregamos uma ferida narcísica, que no fundo, tem a incompletude como raiz.

Mas o que se tem visto, principalmente na pós-modernidade, é que o sucesso e prestígio a qualquer preço, onde tudo que fazemos e pensamos tem de estar a serviço de um objetivo adotado e venerado pela mídia, terminam por obliterar ou encobrir a singularidade de cada indivíduo. Vivemos num mundo tão a reboque do TER, que o tempo dispensado para o pensar e o refletir, já não mais existe.

Quanto ao muro rígido entre as diversas facções religiosas, que tem o seu reflexo no apartheid social(ou vice versa), dificilmente será derrubado. É que no mundo das Imagens, cada deus, criado à semelhança do homem (ou imaginado pelo homem), continuará como Narciso, achando feio o que não é seu espelho. (rsrs)

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Pelo menos o que pode ser feito é aprendermos a lidar com esses sentimentos, inclinações ou tendências já que, neste caso, estamos lidando com algo natural, embora potencialmente ruim. Pena que haja líderes religiosos, políticos, pensadores e personalidades famosas com influência social mascarando e/ou alimentando isso. Mas chega o momento em que os muros precisam ser derrubados.