Arthur
Schopenhauer, o filósofo do pessimismo, com a “Parábola
do Porco Espinho” realizou um primeiro esboço de leitura
psicanalítica dos afetos paradoxais que caraterizam o humano,
antecedendo dessa forma o conceito de ambivalência que, mais tarde,
seria objeto de longas, cansativas e profundas análises de Sigmund
Freud.
Os
porcos espinhos quando enfrentam baixas temperaturas não se encostam
a fim de se aquecerem, mantêm uma certa distância entre eles para
não se ferirem mutuamente com seus próprios espinhos. Os instintos
os levam a se manterem separados um dos outros, desviando-se do
contato corpo a corpo, extremamente doloroso para eles. Aqui há uma
analogia a ser explorada: os porcos-espinhos nos primeiros momentos
de suas vidas, assim como acontece com o ser humano em seu primeiro
desabrochar, se aconchegam numa intimidade maior, uma vez que os
espinhos, por serem pequenos e imaturos, não provocam mal estar. Com
o tempo, os porcos espinhos, para evitar o sofrimento, abdicam de
viver colados uns aos outros.
Os
espinhos, pelo lado psicológico, tem relação com tudo o que foi
recalcado durante os primeiros anos da vida humana. Cedemos então
uma parte do princípio do prazer, o outrora aconchegante ninho
materno, para aceitar a realidade existencial. Nos primórdios
vivíamos passivamente ligados a uma central que nos nutria e também
nos protegia, sem que fizéssemos nenhum esforço. Após a ruptura
dessa alienação prazerosa, apesar de vestidos, passamos a nos ver
como o mais nu dos animais.
Zigmunt
Bauman parece corroborar o pensamento schopenhauereano,
principalmente agora, quando o tempo tem se tornado curtíssimo para
se dar conta das inúmeras solicitações e apelos provenientes da
cultura da pressa que na pós-modernidade nos bombardeia de maneira
ininterrupta. Diz ele: “Os relacionamentos são como a
vitamina C: em altas doses provocam náuseas e podem prejudicar a
saúde”.
Hoje
o relacionamento interpessoal ou cara a cara está sendo substituído
pelo termo conexão, ou andar conectado. Para o mercado tecnológico
e cibernético atual, não é mais necessário que seres humanos se
aproximem demais. Na sociedade de consumo “porco-espinho”, para
evitar o perigo e a dor de enfrentar cara a cara a conversa mole do
vendedor, o conectado compra seus produtos na solidão de seu quarto,
tendo apenas seu smartphone em uma das mãos. Em vez de ficar numa
loja aturando um chato vendedor a sua frente, perturbando como um
carrapato colado a seu redor, o conectado da pós-modernidade, agora,
pode rir secretamente diante de uma telinha sem ninguém por perto.
Em questão de segundos, após dar três ou quatro cliques no
pequenino teclado de seu aparelho, experimenta seu êxtase particular
ao ver aparecer no visor a gloriosa sentença: “Sua compra foi
realizada com sucesso”.
Conheço
pessoas que, para evitar o alvoroço e a dor de cabeça de ter que
enfrentar trânsito congestionado e assédio de pedintes e
trombadinhas, já não comparecem tanto aos cultos de adoração em
suas igrejas, preferindo alegrarem-se ou emocionarem-se de forma
solitária assistindo todo o ritual sagrado via “on line”.
Já ouvi pelos meios de comunicação até relatos de casos de curas
e batismos virtuais. Com o progresso avassalador da tecnologia
cibernética, o fiel-igrejeiro não vai mais gastar tanto tempo na
escolha de qual roupa deve vestir, qual o calçado que deve usar para
combinar com a blusa, qual a tintura de cabelo e outros produtos de
maquiagem que se devem usar sem medo de que se derretam com o intenso
calor comum nessa época do ano. Agora, com o avanço da internet
Deus é quem vai a você, aí mesmo em seu aposento. Afinal de contas
não são os olhos do Senhor, mas a sua mensagem que vai até onde
você se encontra: não importa que esteja de cuécas, de bermudas,
camisolas ou mesmo no seu próprio banheiro, o que não pode é se
desgrudar de seu smartphone. Se houver falha no “Wi Fi” de sua
residência, pode com facilidade acessar o sinal do vizinho e ser
socorrido em segundos. Veja como é “maravilhosa” a liberdade que
o conectado desfruta sem ter que se envolver em longos preparos que
só fazem subir a pressão arterial, além dos riscos de indigestão
que uma refeição feita a toque de caixa pode provocar.
Na
sociedade “Porco-Espinho”, o espaço virtual vem sendo uma grande
alternativa para evitar, até certo ponto, o mal estar da relação
pessoal face a face. Mas esse refúgio virtual, como tudo que se faz
ou alcança para fugir do “Princípio da Realidade”, tem seus
efeitos colaterais. Esse novo modelo de sociedade corre perigo na
medida em que vai fazendo das pessoas, fortalezas sitiadas, e como
tais, poderão ser tomadas como elementos estranhos por aqueles que
optaram pela vivência cotidiana dura e cruel do relacionamento ao
vivo.
Do
lado de fora dos muros das fortalezas virtuais da sociedade dos
porcos-espinhos estão os que lutam para solidificar os frágeis
laços sociais com seu grito de que “seremos mais ricos se todos
puderem ser incluídos e ninguém ficar de fora”. No entanto, os
céticos, que veem o homem como animal ambivalente (que deseja a
companhia do outro, e ao mesmo tempo teme seus espinhos), percebem a
luta pela solidez desses laços como algo utópico.
Em
uma das cartas sobre o individualismo e a severa crise no
relacionamento interpessoal que por ora passamos, tempo em que tudo o
que é sólido anda se desmanchando ou se liquidificando, Bauman
faz um importante alerta:
“Nesse
nosso mundo sempre desconhecido, imprevisível, que constantemente
nos surpreende, a perspectiva de ficar sozinho pode ser tenebrosa”.
Por
Levi B. Santos
4 comentários:
Bom dia, Levi!
Acho que devemos ver os prós e os contras dessa oportunidade de afastamento que a tecnologia proporciona hoje às pessoas.
Há relacionamentos que fazem mal, violam a sua dignidade e o outro nem sempre sabe respeitar os limites. Você falou da possibilidade de alguém participar de um culto à distância evitando os contatos ruins das ruas, mas eu lembraria que, neste caso, o religioso também se livra dos maus contatos dentro do próprio relacionamento congregacional com irmãos e lideranças ignorantes que não sabem respeitar o sentimento alheio. Se, por exemplo, você está triste ou não se sente a fim de participar de determinadas atividades, sente-se patrulhado no ambiente caso prefira permanecer sentado no banco tentando lidar com a dor. Considere também o quanto é incômodo o irmãozinho ficar se metendo desrespeitosamente na sua vida, impondo pontos de vista dele que considera como verdades absolutas, achando que não se cura de uma enfermidade "porque não tem fé suficiente", entre outras situações mais que evidenciam o outro lado de um ambiente que deveria ser de total acolhimento e promoção da dignidade humana.
De modo algum estou a defender o isolamento das pessoas, mas acho fundamental compreendê-lo. Pois, se pararmos para pensar, o trauma de uma "espetada" custa a passar sendo que a quantidade de curativos nem sempre consegue fazer a vítima esquecer do momento que a traumatizou. E aí não podemos esquecer de que eventos religiosos, festas entre parentes e vizinhos, convivência escolar ou no trabalho, bem como os contatos com desconhecidos nas ruas, trazem esse potencial de agressividade ao mesmo tempo que proporcionam outras satisfações tornando-se, ao final, uma oportunidade de crescimento e de aprendizado.
De fato, essa recusa pela convivência cada vez mais praticada pode criar uma sociedade imatura e incapaz de se unir para reivindicar seus direitos. Com isso, ela também se torna refém de um sistema perverso que só poderão mudar caso furem as regras estabelecidas e movam ações organizadas. Inclusive quanto às armadilhas do consumismo, valendo lembrar que as vendas na internet são concentradoras de riquezas e tiram o emprego daquele vendedor de loja "chato" ou dos ambulantes que necessitam de pessoas nas ruas para oferecerem seus produtos. Com um click, o seu dinheiro vai direto para as Casas Bahia na aquisição de um novo eletrodoméstico junto com a pequena "comissão" do banco ou do cartão de crédito...
Diferentemente dos porcos, somos conscientes e aí cabe ao Homo sapiens aprender a lidar com os seus "espinhos" ao invés de se tornar vítima deles. Daí penso que só uma educação que promova o respeito entre as pessoas pode promover uma harmoniosa convivência na sociedade em que haja limites para os assédios e intromissões na privacidade/intimidade alheia. E isso ainda vai demorar. Principalmente aqui nesse fim de mundo chamado Brasil.
Você falou, Rodrigo, num convívio em sociedade sem a intromissão na privacidade/intimidade alheia.
Esse é o grande paradoxo da sociedade “Porco-espinho” que rege a pós-modernidade. O indivíduo deseja a volta da coesão íntima perdida com a expulsão do paraíso edênico mas, teme os espinhos de seu próximo ̶ essa metáfora tem mão dupla (rsrs).
No Éden de sua vida, o sujeito se via como um prolongamento da mãe. Mas agora, quando temos consciência de que somos seres únicos, subjetivamente falando, essa coesão íntima social se tornou impossível, devido os espinhos pontiagudos de que somos portadores. No entanto, não deixamos de sonhar com o passado retornando, e isso consola a muitos. O certo é que o indivíduo pós-moderno abdica do prazer da coesão forte e do abraço “sincero” para não sofrer furadas de todos os lados. É por isso que mantêm frouxos ou frágeis os laços interpessoais.
Acredito que você foi no âmago da questão quando abordou o crime de intromissão na privacidade alheia. Penso que esse processo profundamente invasivo tem sido o pivô de toda a crise política e ética que, por ora, atravessamos. Concorda ou não? (rsrs)
Pergunta difícil de responder, Levi. Diria que a invasão de privacidade é uma parte pois haveria outras violações também. Na tribo, não há tanta noção de privacidade e as pessoas vivem mais conectadas e se adaptam a situações que pra nossa cultura seriam até violações de direitos humanos.
O que falta mesmo à nossa sociedade é o respeito, quer vivamos de contatos primários ou secundários.
Consideremos também que certas dores são percebidas quando tomamos consciência corporal dela e o mesmo se dá no plano psíquico.
Muitas vezes não tomamos consciência da dor, mas quando temos algo à disposição para neutralizar a sua ação, preferimos viver à base dos analgésicos. Inclusive os psicológicos.
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