16 janeiro 2011

Um Fiel Amigo na Tragédia

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Nos últimos dias, tenho visto pela internet imagens estarrecedoras da “tragédia anunciada” que se abateu sobre o Estado do Rio de Janeiro, especificamente em Teresópolis e Nova Friburgo. Imagens que relembram em tudo a devastação provocada por um forte terremoto ou tsunami. Entre muitas fotos de corpos sendo retirados debaixo da terra e de destruição quase que completa da cidade histórica de Teresópolis, uma imagem me tocou profundamente: a de um cachorro de aspecto triste velando a cova de sua dona.

Alguém poderá dizer: Como pode um cronista deixar de lado o sofrimento humano, para falar de um cão sem dono?

Só quem nunca viu uma história de devoção e fidelidade de um cão a seu dono é que pode pensar que animal não tem sentimentos.

Ecos do romance “Vidas Secas” de Graciliano Ramos, que fez parte de minhas primeiras incursões no mundo da literatura, talvez tenha pesado muito na escolha dessa foto entre outras mais representativas da calamidade que se abateu sobre Teresópolis e cidades circunvizinhas. Tanto a miséria provocada pela seca nordestina que é o centro da narrativa desse antológico romance, como a calamidade provocada pelas chuvas torrenciais do Estado do Rio de Janeiro, fazem parte de tragédias previamente anunciadas e nunca tratadas com seriedade.

Vidas Secas”, talvez seja o livro que contém maior sentimento da terra nordestina, que apesar de ser dura, áspera e cruel, nunca deixou de ser amada pelos que estão a ela ligados.

Tinha meus 17 anos quando li esse memorável livro, no qual, pela primeira vez, pude perceber que pessoas podem ser animalizadas, e animais podem se tornar humanos. Um dos aspectos que mais me impressionaram no romance foi o descaso do governo com problema da seca no nordeste. Associei essas lembranças de minhas leituras antigas, ao estado de sofrimento dos nossos irmãos que habitam as encostas dos morros sujeitos a deslizamentos causados por chuvas previsíveis nessa época do ano, ante o olhar displicente dos governantes que irresponsavelmente autorizam ou toleram construções de moradias em locais totalmente inviáveis.

Mas, o personagem de “Vidas Secas” que me arrancou lágrimas, não foi nenhum ser humano do romance, e sim, uma cadela humanizada, apelidada de “Baleia”. Talvez, quem sabe, o inconsciente, tenha me influenciado a trazer um animal humanizado como contraponto à insensibilidade dos que são bem pagos para cuidar do bem estar da população brasileira, e não o fazem.

A foto do cão humanizado (veja a tristeza em seus olhos) ao lado da cova da sua dona, uma moradora de Teresópolis, fez evocar em mim um trecho emocionante de “Vidas Secas”, onde seu autor de forma especial, revela os sentimentos da cadelinha “Baleia” — que na historia é também uma impotente vítima das circunstâncias.

Trago abaixo, a narrativa sobre essa cadela, que por hora, associo à dor do cão, à beira da cova de sua dona, no cemitério de Teresópolis:

“Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que se achava, nem percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora, cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondando as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, onde sinhá Vitória guardava o cachimbo. [...]Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a lingua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem difícil do barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito.

Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente, sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.

Baleia queria dormir. Acordaria feliz num mundo cheio de preás...”

(Trecho do Romance, Vidas Secas, de Graciliano Ramos)


Por Levi B. Santos

Guarabira, 16 de janeiro de 2011

Imagem: http://oglobo.globo.com/rio/fotogaleria/2011/13566 (foto Nº 11)

10 comentários:

Micheline Gomes disse...

Prezado Levi

Peço-te desculpas por fazer tempo que não comento em seu blog.
Vi esta imagem pela internet. Marcante!

Seu texto como sempre, poético e belo nos ensina como a vida mesmo em meio as tragédias, nos faz acreditar que ainda podemos ter amigos.

Eder Barbosa de Melo disse...

Olá Levi, obrigado por compartilhar conosco momentos como este, sempre atento a sensibilidade e a razão. Essa cena é mesmo emocionante, um cão expressa com tanta clareza a dor de perder a dona, enquanto muitas autoridades que poderiam evitar esse tipo de catastrofe se omitem. A miséria humana é lamentável, as vezes pior que a dos cães. Só nos resta acreditar em dias melhores. Obrigado por todos os emails que tens me enviado, por favor não deixe de enviá-los, mesmo que as vezes eu não tenha palavras para expressar o que sinto quando leio seus belos textos. Abraços!

Hubner Braz disse...

Levi,

Parabéns pelo texto que mostra o sentimento, valor, a vida. É brilhante ver numa foto a devoção de um cão ao seu ex-dono.

É lindo, é surreal...

Abraços

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Prezado Levi,

Obrigado por se lembrar do que houve aqui na Região Serrana do Rio de Janeiro.

Não tenho palavras para descrever esta tragédia que se abateu sobre a minha cidade de Nova Friburgo, algo que marcou nossa história com acontecimentos de enormes proporções que deixou um rastro de centenas de mortos e milhares de pessoas desalojadas. E, obviamente, também morreu muitos animais inocentes, os quais, às vezes, conseguem ser mais humanos do que muitos de nossa espécie.

Há na Bíblia uma passagem que diz: "Quem pode dizer se o fôlego do homem sobe às alturas e se o fôlego do animal desce para a terra?" (Eclesiastes 3.21; NVI)

Durante essas tragédias, aquela senhora que foi resgatada por uma corda lembrou-se da perda de seus animais de estimação e lamentou não ter podido salvar um de seus cachorrinhos quando o pessoal do prédio ilhado pelas águas estava puxando-a.

Conforme divulguei em meu blogue (desde já agradeço seus comentários em meu artigo), as
pessoas em minha cidade estão precisando de várias coisas, dentre as quais água mineral, alimentos não perecíveis e de pronto consumo (massas e sopas desidratadas, biscoitos, cereais), leite em pó, cesta básica, colchonetes, cobertores, kits de higiene pessoal e fraldas descartáveis, etc.

Minha igreja está buscando uma ação coordenada e os contatos podem ser feitos com o nosso pastor Robson Rodrigues pelo telefone (22)9213-3016 e um fixo no Rio de Janeiro (21)3079-0626.

Provavelmente as associações de defesa dos animais devem estar envolvidas no recolhimento de rações e de donativos para cães e gatos.

Neste momento o que mais estamos precisando é de apoio.

Um forte abraço!

Levi B. Santos disse...

Prezada Micheline

O texto fala de um nordestino da "peste" (termo que nós paraibanos e pernambucanos tanto gostamos de usar).
Trata-se do Alagoano Graciliano Ramos, que com muita sensibilidade, teceu em seu memorável "Vidas Secas", a história de uma cadela humanizada, que em tudo lembra o cão que perdeu o seu dono em Teresópolis.

A dor da perda de um ente querido está estampada na foto do cão solitário(e sem máscaras), dando a impressão que ainda espera que o mesmo apareça.

Achei por bem, trazer essa emblemática imagem como símbolo de solidariedade com as vítimas desse desastre de proporções colossais.

Levi B. Santos disse...

Caro Eder

É triste constatar que essa foi mais uma tragédia anunciada, pois, se tínha condições prévias de evacuar toda a população das áreas de risco. Tanto é que desde o dia 04 de janeiro os técnicos que monitoram a previsão meteorológica do Rio tinham enviados cerca de quinze avisos à defesa civil, alertando sobre uma grande tempestade que estava próxima a cair sobre essa região.

Diante desse quadro de descaso com vidas humanas, é de se concluir que o cão tem mais coração que o próprio homem.

Guiomar Barba disse...

Levi,

Sua sensibilidade me remete ao fiel cachorro de um dos meus tios. Após a morte dele, seu cachorro foi irredutível a qualquer tentativa de tirá-lo da sua cova, ele permaneceu ali, até a sua própria morte.

A propósito, escrevi sobre SAMPA no nosso blog e suas enchentes. Dê-me o privilégio de visitar-me. rsr

Abração.

Levi B. Santos disse...

GUIOMAR

O seu relato de um cão que ficou até a morte ao lado da cova do seu dono, evocou em mim a lembrança de um tio que não teve filhos, e criava três gatos como se fossem pessoas queridas suas.

Esse tio meu veio a falecer, e foi na cerimônia fúnebre, que avistei os três gatos encolhidos debaixo do seu caixão.

Passado algumas semanas, soube que os mesmos tinham morrido, apesar de se ter oferecido ração para eles.

Ah, se o homem globalizado fosse solidário quanto esses animais, o mundo seria outro. Não achas?

Levi B. Santos disse...

Caro Rodrigo

Li, bastante sensibilizado o seu relato da tragédia que aconteceu tão pertinho de você

Fiquei imaginando: como a vida se esvai em um segundo, no meio da noite, sem que ninguém perceba ao menos o que estava acontecendo.

Assisti pela TV, cenas que jamais irão sair de minha memória, como o resgate de um soterrado a mais de três metros de profundidade. Que força sobrehumana fez com que aquele homem saísse dali vivo, apesar dos graves ferimentos!

Fica aqui a minha solidariedade a você e familiares, nesse momento de tanta perda e tanta dor.

Eduardo Medeiros disse...

levi, essa tragédia não se abateu somente aos moradores da região serrana do rio, mas sim sobre todos nós.

é muito emocionante ver a lealdade que um animal pode ter com seu dono. com certeza eles têm sentimento, só não sei se sentem como nós sentimos.

lembro também de baleia, a cachorrinha sertaneja que carragava a sina de todo sertanejo: lutar contra a seca e a miséria.

por coincidência, postei no botequim um texto falando da tendência atual em se valorizar os cachorros com se fossem bibelôs, enchendo-os de mimos supérfluos que só fazem enriquecer a indústria do ramo de pet shops.

como cantava o eduardo dusek, "dê guarida pro cachorro mas também dê pro menino..."