Terminava assim as minhas noites domingueiras: de olhos cerrados, torcendo pela Vida contra a Morte, ao som do tradicional hino cristão que, ainda hoje, é usado para arrebanhar as almas em conflito entre suas poderosíssimas forças internas.
Vida ou morte qual vais aceitar?
Amanhã pode ser muito tarde
Hoje Cristo te quer libertar”.
A casa de minha infância, de que me lembro com saudade não é mais a mesma que dava guarida a essa ilusão de me ver partido em duas metades: “uma má e outra boa”, de me ver como um campo de trigo em que não há joio por perto para me atrapalhar.
Agora, outros sonhos povoam o espaço sentimental dessa casa, a ponto de me deixar mudo diante da escolha fatídica do apelativo hino “cristão”.
No meu imaginário de menino não via como metáforas os termos: “Vida” e “Morte”, por isso mesmo não entendia a grande tirada filosófica de Cristo que no evangelho de São João deixou claro que, “Vida eterna é conhecer a Deus” e “condenação eterna é a ignorância a Seu respeito”.
Assim como o dia (a luz) e a noite (as trevas) se revezam ininterruptamente, assim somos nós que vivemos e morremos a cada dia. Somos condenados aos desencontros e encontros entre as pulsões de vida e pulsões de morte. O poeta Olavo Bilac chegou certa vez a dizer em um de seus versos: “Em meu peito há um Demônio que ruge e um Deus que chora”. Separar de nós essas instâncias psíquicas seria inumano, seria a própria morte.
Mas a civilização dita cristã opta secretamente por essa separação, jogando-nos diante de uma escolha impossível de se realizar. Ela quer excluir o resíduo dos sentimentos “maus”, negando a lógica dos nossos paradoxais afetos internos.
Na última hora, Jó — personagem mítico Judaico —, foi libertado da cegueira psíquica que o impedia de enxergar a sua ambivalência interna, simbolizada por Deus e o diabo em conflito, imagens que representam os nossos dois lados obscuros que não podem ser separados e sim reintegrados para que possamos viver em equilíbrio. A Paz conseguida por Jó foi decorrente da aceitação de seu outro lado, como parte integrante de sua natureza. Aquilo que ele mais temia — a síntese dos dois lados aparentemente opostos de sua natureza — aconteceu.
Espinosa, treze séculos depois de Santo Agostinho dizia: “As afecções de ódio, de cólera e de inveja, resultam da natureza e não de um vício desta.”
Respeito o fundamentalista (ainda tenho suas crises) quando entende de forma literal o mito da revolta dos anjos, movidos pela inveja contra o Criador, sem se deter na sua grandeza simbólica que revela nada mais que a nossa ambivalência. Os mitos bíblicos são amostras das pulsões de morte e de vida latejando em nossa psique.
O meu imaginário de crente forjado na minha efervescência instintiva mexeu em meus sentimentos e desejos contraditórios, produzindo uma estranha composição de visão de mundo: então eu via que a vergonha dos incrédulos era uma vergonha escancarada, enquanto que em mim, secretamente, reinava uma inveja envergonhada e reprimida.
Diz o convertido: “Não sou mais escravo dos desejos”. Mas para onde quer que ele corra, lá está o desejo, como diz o rabino, Nilton Bonder, da Congregação Judaica no Brasil: “O Governo do desejo é sempre marcado pela maldição da carência e pela dependência total do querer".
Talvez, a ambivalência representada pelos eternos extremos denominados vida e morte, na última hora, seja substituída pela univalência ou um único desejo: “o de partir”. Só aí, com o nosso corpo de desejos já desfalecido é que poderíamos ouvir os acordes finais do nosso lado transcendental, a se esvair do nosso órgão-comandante – o cérebro -, como a última função nossa a desaparecer.
Mas aí, esse desejo de partir já não seria mais a univalência, e sim uma ambivalência, pois, o anseio de partir da última hora seria o mesmo desejo ambíguo de morrer para viver.
Por enquanto, como seres da dúvida e da ambigüidade, é melhor que vivamos e morramos um pouco a cada dia, do que ficar o tempo todo digladiando-se em querer egolatricamente só ganhar a vida.
Ensaio por Levi B. Santos
Guarabira, 03 de fevereiro de 2011
11 comentários:
Nossa mãe!! Que beleza!
Abraços...
Prezada Mariani
Que bom você ter gostado do ensaio.
Sinta-se em casa, e fique a vontade para expor a sua crítica, pois como diz Paul Valèry:
"A palavra é metade de quem pronuncia (ou escreve), e metade de quem a ouve (ou lê)."
Volte sempre
Shalon, Levi!
Muito bem escrito seu texto, mas hei de fazer aqui uma ponderação sobre o que nos ensina a Torá:
"Hoje invoco os céus e a terra como testemunhas contra vocês, de que coloquei diante de vocês a vida e a morte, a benção e a maldição. Agora escolham a vida, para que vocês e os seus filhos vivam, e para que vocês amem o SENHOR, o seu Deus, ouçam a sua voz e se apeguem firmemente a ele. Pois o SENHOR é a sua vida, e ele lhes dará muitos anos na terra que jorou dar aos seus antepassados, Abraão, Isaque e Jacó" (Deuteronômio 30.19-20; NVI).
Outras passagens das Escrituras hebraicas também confirmam a direção do último rolo de Moisés, dentre as quais menciono 1Samuel 12.24-25, o Salmo 1º, Provérbios 4.19 e 14.12.
Bem, entendo que devemos reconhecer a ambivalência que há em nós como fez Paulo em sua epístola aos Romanos. Ou seja, não posso negar que há um mal em mim. Uma força que age no Rodrigo e que é adúltera, idólatra, gananciosa, homicida, roubadora, ingrata, irascível, invejosa, pervertida e, por final, destrutiva. Contudo, o Criador me dá o direito de escolha. De seguir cegamente estas pulsões e compulsões ou negarmos o desejo ruim. Aliás, era isto que Caim deveria ter feito quando Deus lhe falou:
"Se você fizer o bem, não será aceito? Mas se não o fizer, saiba que o pecado o ameaça à porta; ele deseja conquistá-lo, mas você deve dominá-lo". (Gênesis 4.7; NVI)
Concordo com a citação de Espinosa, feita no texto, de que ódio, cólera e inveja são resultantes da natureza humana (da natureza caída que todos temos diga-se de passagem). Mas o fato de reconhecermos a existência desses impulsos significa que precisamos não dar vazão ao sentimento ruim, mas procurar combatê-los com os bons. Por exemplo, se uma pessoa me faz sentir ódio, devo buscar compreendê-la e aí vai uma técnica excelente - mentalizar o nosso oponente quando ele ainda era um bebê indefeso e ingÇenuo assim como eu também fui.
Finalmente, como se sabe, a luta contra a nossa natureza ruim é muitas das vezes frustrantes e as cadeias, os divórcios, os consultórios dos terapeutas estão aí para provar a derrota humana. Mas é aí que chega a mensagem da graça salvadora de Jesus Cristo. Graça esta que é ressocializadora, que inclui os perdidos de volta no Reino, que perdoa, que mostra a compreensão divina e requer de nós a mesma atitude benigna para com os que agem de maneira errada.
Em resumo, entendo que devemos confessar, e não mascarar, a natureza ruim que há em nós. E, uma vez aceitando-me que sou um pecador reincidente, devo aceitar o perdão divino, trabalhar minhas decisões, amar incondicionalmente meu próximo e seguir sabendo que não sou justificado pelo que faço ou deixo de fazer.
Portanto, a cura se passa pela compreensão dessa condição humana, mas é preciso escolher a vida e a busca do bem.
Levi, eu creio que a Bíblia nos deixa bem claro que devemos reconhecer que somos ambivalentes por natureza, e nos direciona, não a fugir desta verdade, mas a saber como dominar o mal que há em nós, que, se alimentado, redundará em dores não só para nós mesmos como para o nosso próximo.
Platão usando o mito dos cavalos alados nos trouxe um figura muito clara, concluimos que se não domarmos o nosso cavalo arisco, desceremos às profundezas da mediocridade enquanto o dócil, o sensato, nos leva a cultivar valores sempre transcendentais.
Quisera me pautar sempre pelos ensinamentos de Cristo e vivenciá-los com mais rigor, só me trariam benefícios.
Beijão amigo.
Caro Rodrigo
Eu abordei os temas Vida e Morte como metáforas para explicar a nossa ambivalência psíquica.
“Pois o SENHOR é a sua vida” — que pincei do trecho do V.T. em sua citação confirma justamente as minhas divagações psicoteosóficas.
Cristo falava que o "Reino de Deus" estava dentro de nós, em outras palavras: o “Reino do SENHOR estava dentro de nossa psique”
Entretanto, temos que entender que Reino também é uma metáfora arquetípica da nossa mente. Quando dizemos "Reino", subtende-se que existe o SENHOR e seus súditos, sem os quais ele não seria Senhor.
O senhor e seus súditos tanto podem viver em comum ACORDO, como podem viver em GUERRA.
Mas como seria um reino de Paz?
Penso que seria um reino onde o Rei pudesse viver em equilíbrio com os servos ou escravos. O Senhor que provoca tremor e temor nos seus súditos é aquele que acende o pavio das pulsões de morte.
"coloquei diante de vocês a vida e a morte, a benção e a maldição. Agora escolham a vida"
A “bênçâo” seria o resultado do equilíbrio entre os dois pólos e não a escolha de um pólo.
A “maldição” seria a não assimilação dos afetos ambivalentes. Ela ocorre quando projetamos no outro o mal que habita em nós. Vem daí a figura simbólica — o “bode expiatório” - que carregava consigo os nossos males.
Aqui, escolher a vida significa o reconhecimento por parte de nós de que o Senhor não quer a destruição dos seus súditos ou servos, antes quer a PAZ, que em outras palavras significa querer o equilíbrio entre as figuras que representam o nosso INCONSCIENTE e a nossa CONSCIÊNCIA; quer a reintegração entre o Senhor (superego) e os súditos (a esfera dos desejos).
O equilíbrio é isso: Eu abdico de uma parte dos meus instintos, para em contrapartida não ser cobrado pelo meu superego.
A razão do REINO só existe porque os súditos trabalham para o seu Senhor. Eles devem a vida ao seu Senhor. Não há reino sem súdito, nem há reino sem Senhor.
O Senhor deve compreender os seus servos (VIDA), para que o reino não tenha fim (MORTE)
CONCLUSÂO: A “escolha” no sentido da polarização ou fixação em um dos pólos, seria o FIM.
Abraços,
(desculpe se não me fiz entender - rsrs)
GUIOMAR
Cristo veio viver a ambivalência dos nossos instintos e desejos contraditórios, para que pudesse nos entender.
O seu desejo não era o de morte de cruz, por isso pediu ao pai:
“Não faça isso comigo não!.. Tenho pra mim que é possível para Ti, ó pai, passares de mim esse cálice”
Eis o Seu conflito: existia uma vontade imperativa emanada da “imago Paterna” internalizada em sua psique: estimulando-o a ir em frente; ao mesmo tempo, também, existia o desejo de não cumprir a missão(ambivalência).
O conflito entre as duas vontades se encerrou quando desfalecido e sem mais desejos carnais, bradou: ”Seja feita a Tua vontade”
Dando asas a imaginação pressinto que antes de morrer Ele deve ter ouvido do Pai, algo assim:
“Esse Reino, filho meu, é uma obra humana efêmera mais sólida. Outra solidez não existe. Só dentro do recinto do coração humano com suas vicissitudes é que posso trabalhar com alegria e proveito”.
Abraços,
Olá, Levi,
Confesso que ainda estou tentando compreender o sentido do magnífico texto que expôs.
Por acaso a sua conclusão não teria a ver com esta célebre passagem bíblica do livro de Cohélet?
“Não seja excessivamente justo nem demasiadamente sábio; por que destruir-se a si mesmo? Não seja demasadamente ímpio e não seja tolo; por que morrer antes do tempo? É bom reter uma coisa e não abrir mão da outra, pois quem teme a Deus evitará ambos os extremos [ou seguirá ambas]”. (Eclesiastes 7.16-18; NVI)
Ou seja, parece-me que fez uma re-leitura bíblica com base nesta visão, embora não tenha citado o trecho acima.
Rodrigo,
Como a nossa interação na blogosfera é maravilhosa, pois foste buscar lá em Eclesiastes, um trecho super-emblemático que resumiu toda a minha fala enfadonha. (rsrsrs)
É por aí meu amigo, não tenha dúvida...
P.S.: Mais tarde, quem sabe, iremos publicar toda a nossa dialética. O bom nisso tudo não é o texto, e sim o que ele provoca. (rsrs)
Abraços
Pois é, Levi! Acho que vc usou o método indutivo (rsrs). Mas o que escreveu me interessou porque considero importante que as pessoas não neguem a natureza má que há nelas, pensando que, pelo fato de terem levantado a mão no apelo pastoral e se batizado nas águas (ou até falado em línguas?), tornaram-se novas criaturas imunes ao pecado, como na verdade o velho eu continua bem latente e, por inúmeras vezes, aflora com um potencial bem destrutivo. Seja pela força do pecado ou dos legalismos, ascetismos entre outros comportamentos que... também são maus aos olhos do Eterno.
Confesso que, por várias vezes, evitei pensar sobre o texto de Eclesiastes que citei. Eu comecei a ouvi-lo na igreja desde reputo ter sido minha experiência de conversão (1990), mas ainda não o entendia e, depois, sentia uma vontade enorme de desconsiderá-lo. Ou quem sabe eu não o queria apagá-lo da Bíblia porque no fundo aquelas palavras me incomodavam e me deixavam inseguro, confuso.
Porém, seu texto está memmostrando que aqueles versos incômodos fazem-se presentes em outras partes das Escrituras. Inclusive no comportamento de Jesus e aí eu faria menção da maneira surpreendente como o Senhor viveu e praticou o Shabat. Aliás, muitos cristãos enganam-se quando acham que Jesus teria revogado o 4º mandamento. Hoje, porém, entendo que ninguém mais como Jesus soube entender o significado de vida que há naquele preceito da Torá. E, se o Messias viesse hoje, certamente mandaria a Igreja praticar o Shabat.
Em tempo!
Achei um texto interessante na blogosfera que talvez tenha algo a ver com o que estamos a debater:
http://www.hermesfernandes.com/2011/02/sombra-e-agua-fresca-procura-de-um.html
Prezado Levi:
Em plena metade de 2015, eis que pego a mim mesmo no "flagra" lendo um texto seu de 2011! E, claro, admirando sua perspicácia em encontrar no texto bíblico, metáforas para clarear meandros psicanalíticos.
E, creia-me, meu amigo; nesses anos que se passaram, tenho descoberto que o texto tido como sagrado contém infinitamente mais metáforas do que possamos imaginar.
Um abraço!
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