Ao
abordar o tema dos Desejos Humanos, o Teólogo e o Analista
constroem, enfim, uma ponte sobre o vazio instalado entre a
Psicologia e a Teologia. Agora, sempre que tiram férias na mesma
época do ano, reservam alguns dias para atualizar suas conversações.
Como filhos de pais religiosos fundamentalistas, beberam da mesma
fonte, da mesma tradição. Jamais seus pais e avós poderiam admitir
uma aproximação entre a Teologia e a Psicanálise. Seus preceptores
consideravam que o diálogo entre essas duas instâncias era coisa do
Diabo. Acreditavam que o psiquiatra ou analista da alma ao sondar as
profundezas do devoto, estava lhe roubando o que denominavam “Pai
que está nos céus”.
Nesse
encontro, o Analista e o Teólogo debruçam-se sobre o tema
“Desejos”. Tomados por um reencantamento, se religam e fazem
uma releitura “para além” da fixidez
pétrea e literal dos signos bíblicos que o fundamentalismo
religioso tanto prega e defende.
Teólogo:
Você, em suas argumentações,
sempre reforça que a função do Analista se concentra na ausculta
da pessoa, não no sentido de atender todos seus desejos, mas para
esclarecê-los, deslocá-los do contexto da narrativa ouvida.
Gostaria de saber mais sobre sua Ciência e sua relação com os
desejos humanos.
Analista:
Primeiramente quero salientar que o
campo de batalha em que trabalhamos é o mesmo da Teologia: a alma humana com
suas idiossincrasias. Ou seja, por caminhos diferentes mas não
excludentes, tratamos da incompletude do Desejo humano. Temos em
comum o fato de ter por objeto a palavra trocada entre dois
indivíduos.
Teólogo:
Entendo,
entendo: trabalhamos com o mesmo material ―
a palavra, o verbo.
Em meus sermões adoro
abordar o prólogo do
evangelho de João. Vejo que
ele diz
muito da experiência
advinda da mão dupla da
palavra. Não
sei se este prólogo tem alguma coisa a ver com a relação entre o
analista
e o analisando.
Analista:
Sobre o fenomenal prólogo grego a
que você frisou, eu diria que, primeiro, veio o desejo para depois
surgir a palavra. O “Verbo” do prólogo joanino alude ao
desejo que, na análise psíquica moderna, Lacan conceituou
“Desejo do Grande-Outro”. Desejo que nos fundou lá no
início do nosso desenvolvimento e continua a agir nos encontros
nossos de cada dia.
Teólogo:
Deixa eu refletir com os meus
botões. Quer dizer que na sua concepção o prólogo ficaria assim:
“No princípio era o Desejo, e o Desejo estava
com Deus, e o Desejo era Deus. Ele estava no princípio
com Deus. […] E o Desejo se fez carne e habitou entre
nós”. É, o desejo como centro de tudo, faz
sentido. Como você explicaria a dinâmica do Desejo na figura de
Cristo retratada nos evangelhos, uma vez que Ele como Filho,
abdica de seu próprio desejo para se submeter ao desejo do Pai?
Analista:
De certa forma, o filho é objeto do
desejo dos Pais. Ou seja, o filho é moldado e programado pelos seus
pais, antes de tomar qualquer iniciativa como ser vivente. Antes de
ter desejos, o filho, ainda em vida intrauterina, já é objeto de
preocupação dos pais. Enfim, são eles que dão nome aos filhos
para chamá-los de “seu”. A submissão ao desejo de um
pai-poderoso que nomeia seus rebentos constitui a tônica nos
processos iniciais do desenvolvimento humano. Esse Arquétipo
Patriarcal (Deus da religião, o “Grande
Outro” de Lacan, o Pai da Horda de Freud, o Numinoso
e Transcendente de Jung), em nível inconsciente, nunca
deixará de emitir suas ressonâncias na idade adulta do indivíduo.
As entrelinhas da narrativa dos Evangelhos mostram um Messias, em
seus últimos momentos, irremediavelmente separado do Pai. Pai que
interdita o desejo da completude impossível presente no Filho. Mesmo
no tormento de sua carne a caminho do Gólgota, esse Filho aspirava
reencontrar em glória o corpo do Pai-Simbólico.
Teólogo:
Pelo que acabo de ouvir de sua
parte, o signo “Pai-Poderoso” de que trata a religião,
sob uma nova roupagem, aparece também em seu trabalho de ausculta do
outro. Não é isso?
Analista:
É evidente que Ele aparece sob a
forma de um arquétipo na realidade psíquica de meus pacientes!. Na
minha opinião, o cristianismo é a religião que mais acentua o
impacto da função paterna sobre o ser humano. A primeira
identificação do filho é com o pai. Como o pai tem sua face
amorosa e sua face aterrorizante, o filho vai herdar a ambivalência
paterna (amor e ódio). Na verdade quando o filho se revolta, não é
contra o pai, é sim contra sua face autoritária, que o infunde
medo. Em suma, o que o filho quer, é não ser contrariado em seus
anseios.
Teólogo:
Refletindo bem, não há como negar
que o desejo do Filho (Cristo) na agonia da morte, não se coadunava
com o desejo do Pai, a que você denomina de Arquétipo Patriarcal.
Quer dizer, então, que Cristo abdicou de seu desejo, por um Desejo
imperativo que jorrava de uma instância que vocês denominam,
Psique, que tem para nós o significado de sede da alma?
Analista:
Desejos e contra-desejos são polos
que fundamentam a ambivalência humana. Quanto a esse fenômeno,
Cristo não foi diferente de nós. A Religião e suas có-irmãs,
Filosofia e a Psicologia falam dos atributos da alma, cada instância com o seu modo peculiar de percepção. A alma vem de ânimus,
que no latim e em todas as línguas que dela derivam tem o mesmo
significado: “Aquilo
que anima”. E o que anima o homem, por acaso, não é
o desejo?
Teólogo:
Essa sua fala foi a senha para
trazer à minha mente uma frase de Publius Ovídius Naso (43 a
C.): “Teu destino é mortal mas não é mortal o que desejas”.
Achei esta metáfora bem de acordo com a sua versão do prólogo
atribuído ao apóstolo João: àquilo que nunca morre no sujeito é
o “desejo que se faz carne para habitar entre nós”
Analista:
Em um de seus seminários, Jacques
Lacan, que fez a releitura das obras de Freud, toma emprestado da
religião a expressão “O
Nome do Pai”
para, diferentemente de Freud, sondar os conceitos teológicos
da religião cristã aproximando-os do campo psicanalítico. Na
figura paterna, que tem o poder de nomear, reside a força da Lei. É
esta força que impede o sujeito de morrer de uma overdose de
desejos. É permitido a ele apenas sonhar com o “desejo de ser
completo”. Só o Desejo, que no início fundou a criatura humana,
pode dizer: “Eu sou o que sou!”.
Teólogo:
“Um desejo que fundou a
criatura humana...”, aparentemente parece não fazer sentido.
Gostaria de ouvir mais sobre esse desejo que não vem de nós.
Analista:
Toda a criatura é atravessada por
um desejo materializado no corpo humano, e intermediado pela palavra.
A Psicanálise corrobora com a essência do prólogo grego de João,
na medida em que admite a existência de um desejo se sobrepondo à
nossa vontade. Um desejo que se fez gerado em nossa carne mesmo antes
de termos consciência.
Teólogo:
Se há um desejo paterno que nos
condiciona, não podemos dizer que somos livres. Seria o caso de
concluir que o ser humano está sempre vivenciando uma forma de
escravidão?
Analista:
Liberdade no sentido absoluto do
termo é uma ilusão. Quando meus analisandos, no calor das
descobertas sobre si mesmo, dizem “eu tomei a livre decisão
sobre determinado problema”, eu os levo a reflexão, fazendo a
seguinte objeção: “Quando acreditamos que tomamos decisões
livres, algo nos aconteceu que as orientou antes de agirmos”.
Teólogo:
A sua fala, dessa vez, fez evocar em
mim uma expressão que sempre ouvia nos acalorados debates sobre a
liberdade do homem, quando fazia Teologia. Acho que era
“Servo-arbítrio”, uma obra de Lutero datada de
1525, onde refutava violentamente o livro “Sobre o
Livre-Arbítrio”, de Erasmo de Roterdam. Discutia-se
muito se somos “senhores do desejo” ou “servos do
desejo”.
Analista:
E aí, a Dialética entre “o
Senhor e o Escravo” de Hegel,
levado para o campo das metáforas, interessa tanto a psicanálise
quanto à Teologia, e cairia bem como tema de nosso próximo
encontro.
Teólogo:
Ótimo! Sem dúvida, será um bom
tema para nossas próximas férias.
Por
Levi B. Santos
3 comentários:
Muito bom seu artigo, Levi. Parabéns!
De fato, se pensarmos bem, a Teologia nada mais é do que uma linguagem e que se encontra tão relacionada com a Psicanálise da mesma maneira que a Matemática e o Português. Mas na atualidade, todas as ciências precisam buscar palavras comuns para que haja uma produtiva comunicação com boas trocas de conhecimento, sendo certo que cada qual diz a mesma coisa com palavras diferentes...
Mas vamos ao desejo, o qual, na sua essência podemos considerar como incorruptível. Só que, em razão do contra-desejo e das limitações externas, nossas ações acabam sendo corrompidas. Aí as interferências das influências dos pais sobre os filhos podem mesmo viciar o exercício da vontade. Esta, porém, vai sendo aos poucos descoberta quando fazemos uma auto-avaliação consciente.
Penso ser preciso distinguirmos a vontade dos nossos pais/tutores/educadores do que podemos chamar de "vontade divina". Esta seria o ideal, aquilo que é melhor para nós e para a nossa vida em comunidade. Considero-a como a harmonia e o equilíbrio. Não chegamos a alcançar, mas precisamos dela nos aproximar para sermos mais livres e cada vez menos escravos.
Sendo um pouco mais prático, acho que a pergunta sobre o que de fato queremos pode servir de grande ajuda para melhor nos direcionarmos nesse diálogo com nossa alma ou psiquê. Afinal, por trás de cada decisão ou ação involuntária existe o desejo por algo assim com o os objetos também seriam coisas representativas do que na verdade desejamos. Daí nunca a matéria ser capaz de nos satisfazer já que lá no fundo desejamos o imaterial.
Do seu significativo comentário, Rodrigo, me chamou especial atenção a sua colocação, replicada abaixo:
“Penso ser preciso distinguirmos a vontade dos nossos pais/tutores/educadores do que podemos chamar de vontade divina. Esta seria o ideal...”
Mas é sobre o imaginário “Pai Ideal” que tanto a Psicanálise quanto a Teologia se debruça, cada instância falando a seu modo desse arquétipo que o Teólogo, e Analista, Jung, dizia ser universal, pois existia em todas as religiões.
Muito antes de Jung definir esse “Arquétipo Paterno” presente no inconsciente coletivo, Espinosa, já falava de Deus como a Substância Universal. Sem saber, estava dizendo o mesmo que Ernest Jung, mais tarde, iria enunciar nos profundos estudos que realizou da Psique. Dizia Espinosa
“Somos apenas modos (desejos) desse ser, infinito, necessário e absoluto” A palavra desejos, entre parêntesis, é grifo meu. (rsrs)
Bom dia, Levi.
Como se vê essa necessidade do homem quanto ao que chamou de "Pai Ideal" seria um forte indício da existência de Deus descoberto por um ramo da ciência que é a Psicanálise.
Acredito que qualquer estudo pelo qual o homem se inicia, ele pode elevar-se até seu Criador. As Sagradas Escrituras da humanidade não podem jamais se restringir ao limitado cânon bíblico de uma religião, ainda que encontremos na Bíblia um verdadeiro manancial de sabedoria e conhecimento espiritual. Todavia, Deus também "fala" quando estudamos outras literaturas, a natureza, a mente humana, nossa história, a sociedade, os pensamentos dos sábios, etc.
Seja como for, há sempre que distinguir as vozes dos homens da de Deus. Mesmo na Bíblia Sagrada há inúmeros valores que são meramente culturais coexistindo com o divino, sendo que não se alcança a compreensão espiritual das coisas apenas pela teologização. Há que se exercitar a reflexão pessoal, o auto-conhecimento e uma busca reverente pela sabedoria que desce do alto.
O homem, mesmo tendo domínio sobre os animais, sente-se limitado para compreender o Universo e se conduzir nos caminhos da vida. A realidade é, sem dúvida, muito maior do que nós. Por isso temos a necessidade de buscar o conselho de uma Inteligência Superior - Deus. E como ainda continuamos a nos meter em encrencas, necessitamos da instrução e da orientação do Senhor.
"E guardarás os seus estatutos e os seus mandamentos, que te ordeno hoje para que te vá bem a ti, e a teus filhos depois de ti, e para que prolongues os dias na terra que o Senhor teu Deus te dá para todo o sempre." (Deuteronômio 4:40)
Porquanto te ordeno hoje que ames ao Senhor teu Deus, que andes nos seus caminhos, e que guardes os seus mandamentos, e os seus estatutos, e os seus juízos, para que vivas, e te multipliques, e o Senhor teu Deus te abençoe na terra a qual entras a possuir. (Deuteronômio 30:16)
Ótimo feriado!
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