19 dezembro 2006

DESPERTANDO REMINISCÊNCIAS





A expressão “terceira idade” veio atenuar ou suavizar a antiga, dura e cruel, porém real palavra: “velhice”. Fase importante da vida, pois, é nela que se montam os últimos cacos ou peças do grande quebra-cabeça de nossa existência, feito de restos de lembranças e experiências vividas por longos anos.
Qual seria a última imagem que teríamos de nós mesmos, ao concluirmos através de uma reflexão aprofundada o grande enigma existencial?
Lembro-me como se fosse hoje. Iniciava o curso médio no Ginásio São José de Alagoa Grande do Paó, quando invadido por um misto de temor e timidez, eu observava meu pai vaticinando para mim, do alto de sua autoridade como chefe da casa de máquinas da FSESP: “você ainda vai ser médico e chefe deste Hospital”! A primeira parte da sua profecia se cumpriu, porém, a segunda parte dela, para minha completa felicidade não chegou a acontecer. Na verdade, não tinha o perfil de chefe duro e mandão que àquela época se exigia. Identificava-me perfeitamente na posição de “servo” e não na de “senhor”. Muitas vezes fui tido como “rebelde” por me indignar com as injustiças cometidas contra minha pessoa, e contra meus iguais. Se me excedi em alguns casos, foi em prol da transparência e justiça no Serviço Público.
É do fruto envelhecido que se retira o azeite. Esse “azeite” na forma de aprendizado para o enfrentamento dos conflitos cotidianos, eu não tive a oportunidade de receber devidamente de meu pai. O destino não me reservou o direito de ouvi-lo no esplendor da maturidade em uma sincera conversa a dois, pois, o mesmo, partiu prematuramente, aos 38 anos, na flor da idade como se diz, sem deixar um último olhar, uma última palavra, ou um último conselho. Ao meio dia de um domingo quente de verão, precisamente no mês de fevereiro de l962 em pleno centro da cidade ele foi colhido violentamente por um “jipe” que saía do acostamento da rua, pela contramão. Entrou em coma, falecendo oito horas depois. Que ironia do destino! Ele tinha ido com sua motocicleta a procura de gelo para um amigo poli traumatizado, que estava agonizando no Hospital. O gelo que trazia serviu para ele mesmo.
Chegarei sem delongas ao cerne da questão. A razão maior desta crônica foi uma cena comovente, que tive a oportunidade de assistir a alguns dias. Se eu pudesse, momentos como aqueles, eu eternizaria fazendo parar o relógio do tempo.
É de um pai na decrepitude, já sem forças para sair do leito, sob o fardo pesado das doenças tão comuns nesta fase sombria da vida, que retiro algumas pérolas de extrema significação, para realizar uma profunda e sincera reflexão.
Logo agora, que acabo de entrar nos umbrais da terceira idade, o acaso me leva a presenciar um velho pai muito enfermo, sentindo-se no ocaso da vida, com a maioria dos filhos ao redor do leito. As suas pernas já não mais obedecem à vontade do cérebro, para um encontro que ele tanto gostaria: sentado à mesa, mastigando biscoitos e bolos com o café quente feito pela esposa, como fazia todas as tardes.
O pai dirige o olhar meigo e detido para um dos filhos que acaba de chegar da cidade onde mora. Aperta a mão dele, e fala emocionadamente: “Meu filho! Você faz parte de mim”! Nesta frase dita entre lágrimas, arrancadas com esforço lá do mais remoto do seu ser, deixou registrada a grandeza, humildade e reconhecimento de um pai frente a um filho. A filha primogênita que se encontra ao lado surpreende-se com a franqueza dos gestos e das palavras ouvidas da boca de seu pai e, fala assim de bate - pronto: “Em toda a minha vida, nunca ouvi do senhor tamanha declaração de amor”! O semblante desse pai irradia por alguns segundos, uma alegria incomum, tal qual o prazer saltitante de um menino ao encontrar, esquecido em um porão, um velho brinquedo que ele tanto amou. Em outras palavras, o que o velho pai estava a dizer, era: “Você é carne da minha carne”! Era como se estivesse a afirmar: “Quando eu partir desta vida, perderás uma parte de ti. E no vazio do que se perdeu, tu o preencherás com lembranças daquilo que de melhor pude te dar”.
Tudo isso fez despertar em mim reminiscências dos meus dezesseis anos de idade, quando perdi o meu pai abruptamente. O último presente que ele me deixou foi um silêncio representado pelo vazio de um quadro emoldurado, tanto por boas, como amargas lembranças eternizadas sob a forma de SAUDADE.

Crônica por; Levi B. Santos
Guarabira, 19 de Dezembro de 2006
















23 outubro 2006

A ORFANDADE NA RELAÇÃO PAI-FILHO




Tanto o pai quanto a mãe, estão sempre aquém daquilo que o filho racionaliza em seus pensamentos e desejos. No crescimento, formação social, cultural e religiosa do filho, algo se perdeu, deixando uma lacuna ou vazio, cuja responsabilidade se atribui erroneamente ao que o pai deixou de ensinar. Não sabe o filho que esta orfandade sentida como “algo que faltou”, será a alavanca que o impulsionará em busca de sua própria identidade, fazendo-o adquirir forças para superar o pai, tentando desta forma, obter satisfação naquilo que não lhe foi oferecido.

Não há nada mais cômodo e tranqüilo para os pais, que ter seus filhos sobre total controle, numa tentativa de evitar a orfandade ou vazio, que na certa mais cedo ou mais tarde os atingirá. O pai não pode escamotear esta verdade: um dia eles, os filhos, terão de escrever a sua própria história, que nem sempre corresponderá necessariamente aos desejos paternos. Quanto mais cedo o filho entender que esta orfandade sempre o acompanhará pela vida afora, melhor será para ele. Pois, só o sobre-humano é que o aliviará no enfrentamento do vazio do “ser em si”. Na ânsia de fugir desta orfandade, ele será sempre refém da “vontade de potência” sobre o medo, sobre o desconhecido, enfim, sobre os desígnios da natureza. Esta vontade de tudo poder, talvez o desloque para um prazer a ser vivido no simbólico e imaginário mundo religioso.

A cultura impôs aos pais, o dever de dar todo o bem estar aos filhos, quer sob a forma de proteção, quer sob a forma de assistência. Porém, tanto os pais como os filhos, devem entender que a lacuna da impotência continuará sempre fazendo parte intrínseca de nossa natureza.

Esta é uma questão cuja resposta é, talvez, muito dolorosa: assumir a condição de ser incompleto, ser faltante. Somos portadores de um vazio pesado demais para carregar. O Cristianismo mui apropriadamente determina: “Que devemos tomar a cruz, e seguir”.

Há uma sede inata que provém da fonte dos nossos desejos mais prementes, que nos impulsiona a fazer perguntas como estas: “Por que esta cruz?”. “Para que?”. “Quem será o culpado ou responsável por colocá-la em nossos ombros”? Na verdade cabe a nós simplesmente tomá-la. Cruz esta, que sob a forma de uma orfandade, nos acompanhará em toda nossa trajetória existencial.

Mas orfandade pressupõe algo que foi perdido. A máxima felicidade sem nenhum esforço, a vontade de tudo ter as mãos, de tudo poder da tenra infância, não encontrou ressonância ou resposta por parte do pai natural. Continuar na caminhada, órfão de um desejo interdito que pesa como uma cruz, é a nossa sina. Deus, agora como Pai espiritual, todo poderoso, é doravante a quem nos dirigimos. É Ele quem amenizará o vazio do nosso ser com a “esperança” de um dia nos fazer banhar nas águas da imortalidade. Porém, enquanto mortal, é responsabilidade nossa assumir esta orfandade. Em outras palavras, não podemos abandonar a cruz, porque abandoná-la seria o nosso próprio suicídio.

Phillipe Julien, psicanalista francês, em seu livro “Abandonarás teu pai e tua mãe” descreve com letras fortes o sofrimento existencial de Cristo ante a crucificação. O filho, sofrendo a recusa da lei do desejo por parte do Pai, brada: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste”? Em outras palavras: Por que me deixaste só na procura de preencher a lacuna sem resposta de teu silêncio? “Criaste e instaurasse um vazio (uma orfandade – grifo meu) a demarcar o meu gozo, deixando-o incompleto”. “Jesus pedia ali uma explicação, supondo que o Pai poderia, se tivesse querido, ter usado do seu poder”. Ora, o homem Cristo sentiu, como qualquer um de nós, a não adesão de um Pai poderoso à vontade do filho. Eis a resposta do Pai: cala-se diante da violência e da maldade humana, deixando o filho entregue e abandonado às conseqüências felizes ou infelizes da liberdade e dos desejos humanos. Na visão do filho, a ausência de resposta o deixara órfão do apoio paterno. Na visão do Pai, em seu significante silêncio, demonstrara a impossibilidade de identificação com o filho ante um desejo que não era o Seu.

O vazio existencial humano, sob forma de uma orfandade, que a primeira vista põe o filho em oposição ao pai, só traria resultado benéfico, quando este mesmo filho chegasse a entender profundamente, que o seu desejo idealizado para fugir do real, teria que ser negado, pois tal anseio contrariava o objetivo de um Pai identificado com uma outra realidade.

Para os jovens de hoje, queremos deixar bem claro o exemplo de Cristo, que assumindo o vazio da impotência humana, deixou-se submeter a todo tipo de humilhação, injustiça e escárnio, sem merecimento, e, no entanto, nunca culpou o Pai pelo seu sofrimento. Cabe então ao filho de hoje assumir a sua trajetória existencial, mesmo cheio de lacunas e vazios deixados por um pai silencioso. Silêncio este, entenda bem, não deve se constituir motivo para ressentimentos que porventura venham atordoar o coração do filho. O silêncio de Deus-Pai, num primeiro instante, poderá significar abandono para o filho, contudo, depois lhe proporcionará estímulo para uma apurada reflexão Mais cedo ou mais tarde surgirá o reconhecimento do filho para com o Pai, expressado nesta singela frase: “Contudo seja feita a tua vontade”.

(Ensaio por: Levi B. Santos. Guarabira, l5 de agosto de 2006)

13 outubro 2006

DIVAGAÇÕES SOBRE “ VARRER O CHÃO”




Há muitas verdades, muitas lições a tirar quando empregamos esta tão significativa expressão: “Varrer o chão”. Comumente ligamos esta frase ao nosso labutar cotidiano, que por vezes nos é imposto como uma obrigação contundente e cansativa, coisa que vai de encontro aos anseios mais profundos da alma, que está sempre a desejar um paraíso, um Jardim do Éden de felicidades infinitas com tudo ao alcance das mãos, sem o mínimo esforço.

Considerando o “varrer o chão” como o nosso ganha-pão de cada dia, cabe lembrar aqui alguns trechos da importante obra “Do sentimento trágico da vida” de Miguel de Unamuno, grande ensaísta espanhol do século XIX, em que ele diz: “Uma vez satisfeita a fome, e esta logo se satisfaz, surge a vaidade, a necessidade ─ que o é ─ de se impor sobre os outros. O homem costuma entregar a vida pela bolsa; mas entrega a bolsa pela vaidade”. Em outro parágrafo ele fala assim: “A curiosidade, o chamado desejo inato de conhecimento, só desperta e age depois de estar satisfeita a necessidade de se conhecer para viver”. Diferente do viver para conhecer. O que se depreende da fala deste famoso ensaísta, é que primeiro vem a luta pela sobrevivência, para depois vir o deleite do filosofar, como bem esclarece ele neste outro trecho: “O homem costuma filosofar, ou para resignar-se à vida, ou para encontrar nela alguma finalidade, ou para divertir-se e esquecer suas penas, ou por esporte ou jogo”.

Finalizando este pequeno exercício de imaginação sobre as agruras do infindo “varrer de chão” cito mais um outro trecho de Miguel de Unamuno, que vem bem a calhar, pela sua riqueza de sentido: “O universo visível, o universo que é filho do instinto de conservação, me é estreito como uma jaula pequena para mim, e contra cujas barras minha alma bate em seus vôos; falta-me no ar o que respirar”.

Varre-se o chão para se poder sobreviver, mesmo a custa da privação da liberdade, em uma gaiola chamada “mundo civilizado”, mundo hostil ao nosso espírito de conhecimento do verdadeiro sentido da vida, que paulatinamente tenta nos transformar em um mero “objeto”, em meio a uma sociedade regida pelo consumismo de coisas efêmeras e irracionais. Felizmente, ou infelizmente, fazemos parte dessa engrenagem.

“Varrer o chão”, necessário é para satisfação do nosso instinto de conservação. Contudo, quando a vassoura estiver a descansar “atrás da porta”, cuidemos das coisas do espírito.

(Ensaio por Levi B. Santos. Guarabira, 25 de setembro de 2006)

12 setembro 2006

OS PRESENTES ─ NOS MEUS SESSENTA ANOS




Oito horas da manhã. Após um plantão médico, encontro-me rodeado pelos presentes que Deus me deu nestes sessenta anos de idade e trinta de casado. Todos com cara de sono para um café surpresa.

Quantos pais, com esta minha idade, gostariam, mas, por motivos os mais variados se encontram impedidos de ter presentes como estes diante de si.

Não posso aquilatar, se é bom ou prejudicial para os filhos, tê-los debaixo do mesmo teto. Uma coisa eu sei: o pão que recebo tem dado para todos. Concordo com minha esposa Luza, quando diz: “Deus não deixará o justo desamparado, nem a sua descendência mendigar o pão”.

O meu primeiro presente recebido está aqui ao meu lado. Luza ─ Mulher de fé inabalável que contagia os nossos corações de uma imorredoura esperança, sem a qual não teríamos força para enfrentar as lutas de cada dia. A sua frase predileta, dita com tanta ênfase é esta: “Deus ainda vai me dá a oportunidade de ver meus filhos realizados. Disto não tenho dúvida”. A sua fé contrabalança a dureza de meu ceticismo. A sua sensibilidade é o contraponto de minha lógica e razão. É quando fica mais claro entre nós, que a razão e a fé têm de andar juntas.

O meu segundo presente: George. “Sobejo da morte”, como era chamado pelos pediatras do AMIP, quando de seus longos períodos de tratamento hospitalar. Superou tudo e venceu. Terminou seu curso superior. Continua lendo e estudando muito, aguardando o seu lugar ao sol. Ultimamente tem sido meu incentivador, auxiliando-me nas redações de minhas crônicas. Caladão. Já deu grande prova de fé e determinação em momentos difíceis de sua vida. Vive atualmente o encantamento de ser Pai de uma menina fora de série.

O terceiro presente: Glauber. Também um pedaço de mim, pelas suas tiradas de humor e presença de espírito inigualável. Alegrando sempre o ambiente e nos tirando da monotonia. Por acaso: rir não é o melhor remédio? Homem de uma paixão avassaladora. Sonhador e idealista. Faz projetos mirabolantes que, às vezes, pensamos que não vai dar certo, mas nos rendemos, pois através da INTERNET ele resolve tudo nos mínimos detalhes, deixando-nos boquiabertos. Sentimentalista que é, está hoje numa dúvida atroz: entre continuar gozando das delícias do lar paterno, ou enfrentar um longínquo mundo desconhecido (Argentina).

O quarto presente: Thiago. Uma porção de mim, pelo seu espírito rompedor. Também passei por esta fase. Ele teve a coragem de numa igreja de estilo conservador, adotar um tipo de música de ritmo moderno. Por isso mesmo, nesse meio, ele se tornou um espelho para os jovens de sua idade. Sabe dosar bem o estudo na escola onde exerce sua liderança e os trabalhos espirituais. Herdou uma fé muito parecida com a da mãe.

O quinto presente: minha nora Mauricéia. Deixou o aconchego familiar, para fazer de minha casa o seu novo lar. É bem-vinda. Sabemos que cada família tem o seu modo de ser. Ela está sendo a ponte entre nós e a sua família. Sendo desta forma responsável pela iniciativa de um rico aprendizado, que estamos usufruindo com os seus. Aqui fica um conselho para ela e George: não deixem que o egoísmo paire sobre vocês, impedindo-os de colherem os frutos de uma interessante experiência à dois.

O sexto presente: Ana Gabrielle. O meu xodó, e o de todo mundo aqui em casa. É ela que tira do sério este velho chato e sisudo. Sou duas vezes pai. E criança de novo ao tentar entender este pequeno ser, que se inicia na arte da linguagem. Sabe Deus, o porquê de só vir atender aos anseios de uma mãe (Luza) por uma filha, no início da terceira idade.

Apesar, da avó está um tanto abatida, pois, já está entrando pela terceira semana de uma virose. Mesmo assim não tem medido esforços em cuidar com muito carinho e dedicação de sua querida neta, observando ensimesmada as sua travessuras e cenas de ciúme.

Diante de todos estes vivos presentes, outros seriam perfeitamente descartados.

MUITO OBRIGADO.

(Crônica lida durante o café surpresa, em 11/09/2006)



06 setembro 2006

CONJUGAR ─ NO MEU TEMPO DE CRIANÇA







Eu daria tudo que tivesse,

Para voltar aos tempos de criança...

Que saudade da professorinha

Que me ensinou o bê-a-bá.

“Trechos da canção de Ataulfo Alves”:

(Os meus tempos de criança)



À beira dos meus sessenta anos de idade, uma saudade imensa me invade o coração, ao lembrar das concorridas e alegres sabatinas de conjugação de verbos. Recordo, como se fosse hoje. Eu e meus coleguinhas conjugávamos quase todos os verbos. Entre eles, lá estava o emblemático verbo “mentir”. Sem alvoroço e com muito respeito, perfilados diante da velha professorinha, recitávamos a conjugação do verbo ‘mentir’ no presente do indicativo:

Eu minto

Tu mentes

Ele mente

Nós mentimos

Vós mentis

Eles mentem

A professora concluía com a sua rouca voz: PERFEITO MENINOS!

Com quanta sem-cerimônia e espontaneidade conjugávamos este verbo, que hoje se constitui uma tarefa tão temida por parte de nós adultos, principalmente em época de eleição. É quando mandamos a gramática às favas, em prol dos nossos interesses, muitas vezes escusos. Não podendo abolir o verbo, tornamo-lo defectivo. Melhor dizendo, o conjugamos para os outros e não para nós. Hoje, vergonhosamente conjugamos o verbo mentir desta forma:

Eu ......?..........

Tu mentes

Ele mente

Nós .......?...........

Vós mentis

Eles mentem

Ah! Se a professorinha estivesse viva, diria: PARA O CASTIGO, TODOS!

Antes, quando criança, não tínhamos medo, nem preconceito, em dizer: “eu minto”. Já hoje, a conjugação deste verbo sem defecção torna-se muito perigosa, pois diz uma triste e dura verdade que pode nos prejudicar em nossas negociatas. Recalcamos a primeira pessoa do singular e do plural para um lugar chamado “inconsciente”. Inconsciente este, tal qual um porão esconde crimes não ditos e desejos inconfessáveis.

Cabe aqui, citar o pensamento do grande filósofo francês Paul Valéry: “Os homens se diferenciam pelo que dizem, e se parecem pelo que escondem”.

Como é difícil ser criança de novo, e recitar sem medo o verbo “mentir” como fazíamos diante da professorinha que nos ensinou o “bê-a-bá”.

Razão de sobra teve Jesus Cristo ao dizer para adultos, como nós: “Deixai vir a mim as criancinhas, pois das tais é o Reino de Deus”.

Vejamos um exemplo da linguagem verdadeira e espontânea da criança frente à mentira do adulto:

─ Vovó! Como é que as crianças nascem?

─ É a cegonha que as traz no bico, meus netinhos!

Pedrinho vira-se para Mariazinha e diz:

─ O que você acha? Contamos para ela?

05 setembro 2006

DO SENADO ROMANO À NOSSA REPÚBLICA




Estamos numa época em que escabrosos escândalos estão a macular de forma tremendamente vergonhosa as nossas instituições políticas. Em pleno século XXI, podemos concluir que nada mudou debaixo do sol, parafraseando o Rei bíblico Salomão. Um acontecimento irrefutável, de mais de dois mil anos, se torna necessário vir à tona em momentos cruciais como o que estamos a vivenciar. Assistimos, cabisbaixos, a desmoralização da casa que deveria ser a mais sólida trincheira em defesa da ética e da moral.

Marco Túlio Cícero (101 A.C.), o maior dos oradores políticos romanos, fez um discurso memorável contra “Catilina” (personagem do Senado Romano que prevaricava contra a Lei). Esse ignóbil senador da república, através de manobras clandestinas no momento em que as coisas em Roma andavam confusas, tramava de maneira infame contra as leis de sua própria República.

Faltavam sessenta e dois anos, para o início da Era Cristã, quando Cícero fez o emblemático discurso, que nos impressiona pelo que tem de comum com a nossa história política atual.

Eis alguns trechos do brilhante discurso proferido por aquele corajoso senador romano:

“Oh deuses imortais! Em que País do mundo estamos nós, afinal? Que governo é o nosso? Em que cidade vivemos nós? Estão aqui dentro do nosso número, venerandos senadores, neste Conselho, mais sagrado e mais respeitável da face da terra, aqueles que tramam a morte de todos nós, aqueles que trazem no pensamento a destruição desta cidade, e até a do mundo inteiro. É a estes, que eu como Cônsul tenho a minha frente, e lhes peço conselho acerca dos interesses do Estado, a eles que deveriam ser passado o fio da espada, é que eu nem com a palavra dirijo ainda”.
“E agora, que vida é esta que levas Catilina? Desejo neste momento falar-te de modo que se veja, que não sou movido pelo rancor que eu te deveria ter, mas por uma compaixão que tu em nada mereces. Entraste a pouco neste senado. Quem, dentre esta tão vasta assembléia, dentre todos os teus amigos e parentes, te saúda? Se isto, desde que há memória dos homens, a ninguém aconteceu, ainda esperas que te insultem com palavras, quando te encontras esmagado pela pesadíssima condenação do silêncio”?

Hoje, quando um mar putrefato de sórdidos procedimentos invade com tamanha força as nossas instituições políticas, para nossa reflexão, faz-se necessário relembrar aqui, trechos de um discurso proferido no Senado Federal, em 1914, por aquele que foi um dos maiores oradores de nossa história, “Rui Barbosa”:

“A falta de justiça, Srs. Senadores, é o grande mal de nossa terra, o mal dos males, a origem de todas as nossas infelicidades, a fonte de todo o nosso descrédito é a miséria suprema desta pobre nação”.
“A injustiça, Senhores, desanima o trabalho, a honestidade, o bem, cresta em flor o espírito dos moços, semeia no coração das gerações que vem nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade, promove a venalidade, promove a relaxação, insufla a cortesania, a baixeza, sob todas as suas formas”.
“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver se agigantarem os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.”

Este discurso, hoje, bem que poderia estar afixado com letras garrafais em uma enorme placa na entrada do nosso Congresso Nacional.

23 agosto 2006

O VELHO VIOLÃO





Ao chegar à minha casa, vindo do trabalho surpreendi-me ao te encontrar, meu antigo companheiro de grandes aventuras, combalido, de braço quebrado e cordas enferrujadas em desalinho, com o teu bojo a despregar lascas de madeira, ainda de pé, encostado a uma pilastra do grande portão da garagem, esperando o Caminhão do lixo que te levaria a um triste destino.

Entre os objetos lá do quartinho, no fundo do quintal, foste o único sentenciado e condenado a ser enviado para o “Lixão”. Certamente julgado por alguém, que te considerou um estorvo entre as relíquias acumuladas ao teu redor, as quais foram consideradas de mais valia.

Quem sabe! Se antes de chegares a tua ingrata morada, outras mãos te pegariam, te apalpariam, e após uma complicada reforma, voltarias a alegrar ambientes de um outro dono. Uma coisa eu sei: a tua história por estes trinta e dois anos em que viveste ao meu lado, o teu novo patrão jamais saberia.

Nos desvãos de minha vida, por todo esse tempo, arranquei de ti muitas canções alegres, e algumas tristes. Tal qual uma esposa me acompanhaste na tristeza e na alegria. O teu som se fazia ouvir entre aplausos. Eras cobiçado pela tua postura e beleza. Os que te ouviam admirados, diziam ao te ver de pertinho: É um majestoso instrumento, um “Di Giórgio”. A tua superfície brilhava e refletia tudo ao teu redor, como se fosse um espelho. Tinha um cuidado especial para não seres arranhado em tua tez macia.

Não...! Não posso te dar tão infame destino! Por duas vezes colei as tuas partes quebradas e voltaste a alegrar a minha casa, pelas mãos dos meus três filhos, que cresceram na arte da música, dedilhando as tuas cordas.

Viajaste por tantos recantos do meu Estado, que eu perdi a conta. Em clubes, igrejas, praias e residências de amigos. Em festas de aniversários e outras comemorações, desde os idos de 1974, quando iniciava a minha vida de médico. Lembro-me ainda, no silêncio das minhas noites de insônia, quando a tua voz ficava mais pungente e suave, e, como um bálsamo, fazia-me sonhar devaneios de um tempo que não volta mais.

O menor tributo que eu poderia te prestar, o fiz imediatamente, ordenando:

─ Recolham o que resta deste violão ao quartinho! Algum dia haverá concerto para ele.

Dei-te as costas, e saí. Na esperança, de que futuramente pudesse extrair de tuas cordas, sons dolentes, que tanto me acalmava o espírito naquelas noites enluaradas e frias de outono. Estação esta, que me inspirava a tocar as velhas e nostálgicas canções, que nos meus quinze anos, ouvia ao lado de meu pai em sua vitrola antiga, de discos de setenta e oito rotações.

Crônica por Levi B. Santos. Guarabira, 17 de julho de 2006

20 agosto 2006

REBULIÇO BOM





Ausência – presença. Solidão – rebuliço. Encontros - desencontros. Desses binômios de sensações, não podemos fugir em nossa vida de relação.

O silêncio de uma casa vazia, limpa e bem arrumada, com tudo no seu devido lugar nos leva a experimentar a “solidão”, que como um refúgio, nos estimula a uma imaginação reflexiva. Na mudez deste significante silêncio é que nos vem a compulsão de revelar através da escrita, fragmentos da vida representados pelo que se vivencia no dia-a-dia, que aparentemente são coisas simples, mas pela sua espontaneidade e ternura se revestem de uma importância incomum. Para os sensíveis, a solidão traz uma aprendizagem enriquecedora, pois em sua trama se evocam as expressões comunicativas prazerosas ou não, das palavras, gestos e brincadeiras colhidas na imprevisibilidade dos encontros.

Não queremos falar da solidão de uma casa silenciosa limpa e bem arrumadinha do meio de semana, e, sim do rebuliço gostoso, que nos tira de tempo, nos finais de semana, e que nos leva a rir. Rir até a exaustão. A casa com tudo nos seus lugares nos deixa circunspetos, propiciando mais as lágrimas que o riso. Riso que se torna o melhor dos remédios na “bagunça” dos Sábados e Domingos. As alegrias gozadas nestes dias nos renovam para enfrentar as fatídicas Segundas Feiras. Dias em que a mesmice da rotina nos invade, e só ficamos com a vaga lembrança das palavras ditas e gestos guardados dos fins de semana, a nos remoer por dentro.

Deus após seu trabalho de criação, descansou no sétimo dia. O sétimo e oitavo dia para pais e avós, são dias de devaneios, quando dançam, pulam e correm cansados e satisfeitos com os rebentos a imitarem os seus cacoetes e trejeitos, e a colocarem tudo fora do lugar numa hecatombe de objetos a voar de pernas para o ar.

É em meio a desarrumação da casa e em ocasião como esta, que ocorrem sutilezas que ficam registradas em nosso imaginário pela vida afora, suscitando-nos a passar para o papel o que mais nos impressiona pela sua singularidade.

Eis um relato suscinto de um rebulico de final de semana, em que fui figurante como pai e avô:

Desejei comer um melão. Saí perambulando pela feira de banco em banco. Finalmente, com muita dificuldade encontrei um melão pequeno e bem redondinho. Oito horas da manhã de domingo, pedi a dita fruta para o desjejum. Não encontraram depois de muito procurarem. Foi quando Luza, minha esposa, disse: “O seu melão eu vi ontem à tarde na fruteira, bem aqui. Alguém comeu ou levou”. Procurou-se por tudo quanto é canto e não se encontrou a cheirosa fruta que mandara guardar para o café da manhã.

Ouviu-se então no quintal da casa a voz de D. Penha, nossa empregada:

─ Estava varrendo o chão ali, quando encontrei isso.

Fui então ver. Ali estava um simulacro de melão todo mole com perfurações, escorrendo uma papa amarela. Foi quando George (meu filho) falou em tom de galhofa:

─ Ah! Foi Ana Gabrielle (minha neta de 1 ano e meio) que estava chutando a fruta, pensando que era uma bola.

Viu aí no que deu, ensinarem a menina a jogar bola! Fiquei sem meu melão.

Após o almoço, costumo sempre tirar uma soneca rápida em minha cama, com a TV ligada baixinho. Enquanto me dirigia para o quarto, minha esposa gritou:

─ Cuidado para não se ferir com os pratos, copos e talheres que estão em cima da cama!

Caminhando pelo quarto, pisando em frisos, anéis e presilhas de cabelos que a neta espalhara pelo chão, e observando o efeito do “tsunami” que passara pelo meu leito, exclamei: “Que rebuliço danado foi esse aqui”! Afastei tudo para um lado, e me deitei, inalando odores variados, de caldo de feijão já meio azedo, de galeto frio e suco de maracujá, proveniente de restos do almoço que deixaram ali nos pratos e copos. Em vão, pude dar um cochilo, pois Gabrielle apareceu ràpidamente no quarto com as mãos úmidas a bater em meu rosto, balbuciando: “Bobô ííí, bobô íííí”. Foi quando eu pude entender que fim de semana não é dia de descanso para quem é avô. É dia de rebuliço mesmo.

Levantei-me e saí com a neta a me puxar pela mão em direção a uma barraquinha de guloseimas, instalada ao lado de minha casa.

Crônica por Levi B. Santos

Guarabira em 20 de Agosto de 2006

14 agosto 2006

A ÚLTIMA DO MEU AMIGO JOEL




Tarde de domingo. O sol espargia seus últimos raios sobre os telhados dos casarios do meu bairro, deixando sombras em um lado da rua, e claridade ofuscante de cor dourada nas fachadas das casas do lado oposto. Mais tarde as sombras tomariam todo o bairro, trazendo logo após, as trevas representadas pela noite com seus medos e suas lucubrações fantasmagóricas em forma de pesadelos. Fazia um silêncio convidativo para uma reflexão ou uma leitura amena, porém decidi junto com minha esposa, visitar o amigo Joel, que se encontrava muito enfermo. Desde o início de sua doença eu estava vivenciando uma personificação dupla: eu era o seu médico e seu amigo confidente ao mesmo tempo, o que deixava os aconselhamentos profissionais que fazia, recheados de tiradas de humor, terminando quase sempre em frases de duplo sentido, que nos incitava a dar sonoras gargalhadas.

Chegando a sua casa, tive uma grata surpresa, ao encontrar a maioria de seus parentes mais próximos, e alguns amigos mais chegados a conversar sobre fatos do cotidiano. Era assim que o meu amigo Joel, gostava de ficar no entardecer dos domingos e feriados. Ao olhar para o seu semblante envelhecido naquele fim de tarde, algo me dizia que estava presenciando uma de suas últimas reuniões no velho calçadão de pedras quadradas, que ele mesmo construíra, desfazendo uma pequena horta que existia no local. Conversa vai, conversa vem, eis que ele se dirige para mim desta forma:

─ Levi, me diz o que isto significa: ultimamente, qualquer objeto pequeno que eu seguro, parece tão pesado como chumbo!

Sabia que o seu fígado nas condições em que estava, não podia metabolizar o pouco que ele ingeria, e que a tendência era o agravamento do seu estado nutricional. Deixei propositadamente de responder a sua indagação, para sair com uma pergunta sobre o estado de seu coração, uma vez que o mesmo tinha sofrido um enfarte recentemente e estava tomando medicamentos que podiam estar sobrecarregando mais ainda a sua função hepática.

Perguntei com um ar sério:

Joel, e o teu coração como está? Estás sentindo alguma coisa?

Ao que ele respondeu com a maior presença de espírito, de um modo brincalhão e ao mesmo tempo poético:

Estou sentindo um negócio estranho no peito, Levi.

─ Diga logo, rapaz, para gente tomar as precauções devidas. Disse eu, em tom de advertência.

─ Sabe o que é que tenho no coração? É uma saudaaaadeee.... Respondeu metaforicamente o meu amigo, esboçando um ar de quem tinha me tirado de tempo.

Rimos demoradamente. O Joel era genial. Até em horas como aquelas, ele brincava com a vida. Estava ali, com o corpo a negar fogo, mas o espírito era o de sempre: alegre e jovial.

Quando debatíamos sobre religião, o amigo Joel mudava de aspecto, se mostrava muito compenetrado. Eu ficava verdadeiramente impressionado com a sua descrição apaixonada do livro de Apocalipse, quando ele relatava detalhadamente como seria o milênio de paz em Jerusalém, com a igreja descendo com Cristo para reinar na terra, todos já com corpos transformados, imune às doenças e a morte. Na sua imaginação parecia já estar antegozando as delícias do porvir. Porém, uma coisa o deixava um tanto desapontado nesta história da revelação de João. Exclamando para mim, apertando vigorosamente uma mão contra outra, ele falava:

─ O que me encabula, é que nós, com corpos transformados, como vamos nos misturar com a geração dos que não foram arrebatados e que ficaram aqui na terra? Perguntava ele com a mão em punho esmurrando a outra.

─ O livro do Apocalipse é terreno perigoso, Joel. Principalmente quando a sua mensagem é transportada para o nosso imaginário de uma maneira literal, concluía eu.

De há muito, através de minhas intermináveis leituras, eu chegara a conclusão de que tudo no livro do Apocalipse era simbólico, e devia ter uma significado espiritual e não literal, que o meu amigo veementemente discordava. Tínhamos, porém, algo em comum: Ambos apreciávamos uma boa música tocada com instrumentos de cordas. Fora justamente na véspera deste domingo que fizemos um ensaio musical que me tocou profundamente pelo tom solene em que se deu. Já passava das treze horas do sábado, e o meu amigo Joel não demonstrava sentir a fome que me consumia o estômago. Parecia não querer findar aquele concerto. Solava em seu bandolim, os mais belos hinos da Harpa Cristã, acompanhado por meu filho George, ao violão. Eu observava naquela ocasião, o esforço impetuoso que ele fazia para tirar das cordas do seu querido instrumento, os acordes que às vezes saiam do compasso, devido à fraqueza muscular que deixava os seus dedos trêmulos. Imaginava comigo: cada corda dessas devia estar pesando mais que uma corrente de ferro, contudo, ele continuava firme, e resoluto no seu propósito de tocar enquanto força tivesse. Será que alguma coisa no seu coração dizia que aquele seria seu último louvor? Será que ele pressentiu naquele momento, que afinara o seu instrumento para tocar pela ultima vez os seus prediletos hinos? Não sei exatamente o que se passava por sua cabeça naquela hora. Só sei, que o amigo do peito consumido pela doença atroz, não estava mais no plano carnal e terreno. Pedi para sair, pois tinha muitos afazeres e já eram quase duas horas da tarde. Ele com a voz rouca e fraca me dizia: ─ não vá agora Levi, espere mais! George ficou compartilhando por mais tempo daquele sublime culto, enquanto eu, pesaroso e vergonhoso, saía para cuidar das obrigações costumeiras de um dia de feira.

Segunda-feira às cinco e trinta da manhã, justamente doze horas após aquele saudoso encontro de domingo no calçadão, o telefone toca a minha cabeceira. Era a voz embargada de Ozibete, esposa do amigo Joel: “Levi, corre aqui, Joel parece que está morrendo”!

Troquei ràpidamente de roupa e saí em meu carro, em desabalada velocidade, rumo a sua casa. Lá chegando vi o amigo muito pálido, com respiração superficial. Pressão baixíssima (8x4). Luza (minha esposa), Enódio (seu cunhado) e eu o tiramos com muita dificuldade da cama e o colocamos no banco dianteiro do meu automóvel, para sair rumo ao Hospital. Foi quando tentando acomodá-lo melhor, ouvi, o que seria a sua última palavra: MERDA!!!, disse com o ar de quem estava sendo contrariado. Nada mais falou, entrando em um coma do qual não mais sairia.

O Joel foi sábio até em sua última palavra. Existe um vocábulo mais perfeito do que este, para expressar o que somos realmente nesta vida comum? Assim como o pó é o produto final da construção humana (para o pó voltarás), da mesma forma as fezes são o produto final de tudo quanto absorvemos e ingerimos nesta vida.

Jó, o personagem bíblico que se tornou paradigma do sofrimento físico e existencial do homem, em sua agonia também se expressou como o meu grande amigo Joel: “De sorte que o homem se consome como uma coisa podre...”(Jó 13. 28)

É, até na hora do desenlace fatal, o Joel falou em sentido figurado, isto é, deixou-me um enigmático presente, uma palavra de duplo sentido. Só vim entender depois.

Crônica por Levi B. Santos.

Guarabira, l3 de Agosto de 2006

06 agosto 2006

UM NOSTÁLGICO FIM DE TARDE




Nas minhas viagens para Camboinha III, sempre tenho algo a resolver na Capital do Estado. Numa de minhas andanças por aquelas bandas, já à tardinha, quando estava de saída, resolvi atender a um convite do filho mais velho, e a um desejo de uma neta, que apontava com o braço estirado para o lado do mar que ficava há uns trezentos metros do nosso apartamento.

Eu, e meu outro filho do meio (Glauber) ficamos em cima de um montículo de areia fofa que entrava por entre as frestas de nossas sandálias. Acariciavam as partes descobertas dos nossos pés, ramos de gramíneas marítimas, que se estendiam por toda costa. Emoldurando este quadro, tínhamos atrás de nós um sol com fracos raios a nos fustigar de mansinho, projetando nossas sombras gigantes e estreitas sobre o lençol de areia bordado por restos coloridos de latas de cervejas amassadas e pedaços de copos descartáveis, misturados a restos mortais de algas ressecadas abandonadas pelas ondas da maré cheia que passara há poucas horas por aquele recanto de tão gratas recordações.

O meu filho mais velho com minha primeira neta dirige-se solenemente para a praia, já com as ondas fracas da maré vazante. Segurando a filha com o máximo cuidado lá vai George, driblando as sujeiras, fugindo por certo dos ouriços pontiagudos, tão comuns nesta praia. Em seguida molha os pés de Gabrielle, que começa a pular instantaneamente numa alegria incontida. Em poucos minutos ela se joga, caindo sentada com água à altura do tórax, numa atitude de quem é veterana no banho de mar. É quando Glauber ao meu lado quebra o silêncio: “Ela é destemida mesmo. O menino de Rocha tem tanto medo que não chega nem perto da água”.

Um vento cálido de fim de verão jogava finos grãos de areia sobre nossos corpos. No silêncio de uma praia totalmente deserta me vem à imaginação: Ali estava a nossa continuidade, a nossa herança, a não deixar a tristeza tomar conta daquele fim de tarde. O avô, o pai, e um tio presenciando uma criança esbanjando energia e felicidade fincando o seu marco naquele local, palco de tão saudosas pescarias de rede de arrasto e peladas que duravam até o escurecer, quando enfim exaustos e felizes voltávamos para o nosso apartamento. Um avô já cansado pelo peso da idade, como que passava naquele momento idílico, o bastão na corrida do tempo a um ser de um ano de idade, que reinaria com outras formas de alegria que por certo adviriam em um tempo que já não seria mais o nosso.

Nostálgicos mas revigorados, voltávamos Glauber e eu para Guarabira. Podíamos ler no nosso próprio olhar, o quanto foi providencial o nosso atraso de meia hora. Evocamos ali tantos momentos vividos, “tantas emoções”, como canta Roberto Carlos. George reclamou da insensibilidade nossa em não registrar aquele momento pela câmera do nosso celular. “Fica para outra oportunidade”, pensava eu, quando Gabrielle adentrar na saudosa palhoça de frutos do mar, que suados e sujos de areia outrora freqüentávamos. Na certa, a carne saborosa daquelas patas enormes dos caranguejos terão um outro dono.

Crônica por: Levi B. Santos

Camboinha III, 27-03-2006

DIA DE MÃE



Logo na noite que antecede o dia das mães, meu carro dá o prego. Lá estão na mala, objetos bem acondicionados em embalagens coloridas com laços de fita, que não chegarão às mãos de minha mãe na data escolhida para ela.

Nessa manhã de domingo, dia das mães, a casa, aqui, toda em desalinho, tudo fora do lugar, provocado pela balbúrdia da véspera, mas por incrível que pareça existe silêncio, só quebrado pelo tilintar de pratos sendo lavados na pia da cozinha, e pelo cantar dos pardais em bando pelo quintal. È neste clima que me arvoro a escrever sobre MÃE. Como diz o adágio popular: todo mal na vida traz um bem, o incidente do carro me inspirou este ensaio.

Dia das mães, em conseqüência, também é o dia dos filhos. Dia em que os filhos perguntam para si mesmos: Pode uma mãe esquecer-se de um filho?

Ainda bem, que este dia não é comemorado na véspera. Dia este, em que reina o corre-corre louco das pessoas, a se baterem umas nas outras, suadas e angustiadas na dúvida sobre o que a mãe vai TER. Engarrafamentos fenomenais, até batidas de automóveis, tudo isto acompanhado por um barulho ensurdecedor dos alto falantes a misturar aquelas emotivas e velhas canções aos apelos comerciais insistentes e repetitivos, onde o que mais se ouve é: demonstre o seu amor para com sua mãe, e leve este lindo objeto com preço especial para este dia.

A mãe já tão cansada pelo peso da idade, não merecia uma véspera tão barulhenta e artificial como esta, em que os filhos já sabem o que as mães vão TER, após um sufocante entra e sai das lojas. A referência feita aqui ao “frenesi” das compras, tem o intuito de levar a uma reflexão mais profunda, pois é no mundo do TER, no mundo dos objetos, que os filhos estão envolvidos, quando, na verdade, ela, a mãe, não diz, mas lá no seu íntimo, ela gostaria mais de estar no mundo do SER. É que tudo, que é de objeto presenteado, será possivelmente guardado em um guarda roupa, um armário, ou em uma gaveta, não aliviando a carência de gratidão que a acompanhará até o próximo “dia das mães”.

Dia das mães é todo dia, porque não há um dia sequer que ela não se lembre, e que não peça a Deus por seu filho. Ofereçam a ela essas duas opções, e vejam qual será a sua escolha: Um caro presente, ou um ALÔ, ao telefone, perguntando como ela está! Mas, é o telefone, este valoroso instrumento, a que ela recorre para poder ouvir o seu filho, que surpreso responde à distância: Diga mãe, o que a Senhora quer? Ao que ela responde na mais sublime frase de Mãe ao telefone: “Queria ouvir só a tua voz, estava com tanta saudade”.

( Ensaio por Levi. B. Santos, em 13 de Maio de 2006)



TARDES DE DOMINGO



No domingo eu escapulia

Para o campo da engenhoca

No quintal de tia Anás

Futebol eu assistia.



Bem atrás de uma trave

Sobre a faxina escondido,

Eu aplaudia as jogadas

Do meu time preferido.



Cada gol era uma festa

A orquestra respondia.

Puxando um frevo alegre

Numa bela sinfonia.



Depois do primeiro tempo

No campo podiam entrar.

Pela frente do estádio

Eu entrava sem pagar.



Juntava umas três moedas

Para comprar as doçuras

Que vendiam na torcida,

Uma verdadeira loucura.



Vendiam amendoim

Laranja pêra e sorvete

Pirulito e alfinim

E palitos de rolete.



Geladinhas de refresco

Afora as tapiocas.

Tinha doce americano

E pacotes de pipocas.



Iguarias iguais aquelas

Nunca pensei em provar.

Para falar a verdade

Nem em festas no meu lar.



Meu clube era o Tabajaras,

De grandes craques da bola

Cereba e Lula Teixeira

Não me saem da cachola.



Você veja que loucura

Eu em cima da faxina,

Assistindo um partidaço

Com o treze de Campina.



O Tabajaras em casa

Não perdia uma vezinha,

Mesmo ele jogando ruim

O juiz dava uma mãosinha.



Os jogadores d’outro time,

Gritavam: juiz ladrão

Para nós na passeata

Em cima do caminhão.



Passando por minha casa

Em caminho obrigatório,

Mamãe se desesperava

Gritando um palavrório.



Sai de cima desse carro

Uma surra tu vai ter.

E eu pulando pelas grades

Ía então me esconder.



Dizia então minha mãe

Numa tristeza medonha:

Tu és crente, vagabundo,

Tá me fazendo vergonha.