Nas
sociedades tradicionais, como a dos países árabes, a punição máxima (pena de
morte) é decidida por uma autoridade superior. É um deus absoluto ou um texto
sagrado que dá a sanção antecipada: quem roubar, matar ou assaltar será enforcado
ou terá a mão cortada, sendo as execuções festejadas pelo público ante um
soberano que se encarrega da aplicação da pena.
No
mundo ocidental sob o pano de fundo da “democracia”, são os cidadãos comuns a
fonte de toda autoridade jurídica e moral.
Indagado
por uma leitora que incisivamente perguntou “o que um psicanalista,
pensava sobre a pena de morte?”, por ocasião do hediondo crime
de Santa Tereza – Rio de Janeiro (maio de 2001), Contardo
Calligaris, psicanalista e colunista da Folha de São Paulo teceu
considerações bastante interessantes, das quais trago à tona trechos
imperdíveis:
“[...]
Matar
um condenado à morte (em nossa sociedade) não é uma festa, pois é difícil
celebrar o triunfo de uma moral que é tecida de perplexidades. As execuções
(aqui) acontecem em lugares fechados, diante de poucas testemunhas: há uma
espécie de vergonha. Essa discrição é apresentada como um progresso: os povos
civilizados não executam seus condenados nas praças. Lá, a lei bíblica de
Talião (olho por olho e dente por dente)
é
exemplarmente aplicada. Aqui, passamos à recomendação de Cristo: ‘Quem estiver sem pecado atire a primeira pedra’. Numa versão laica e psicanalítica,
convencidos de carregar em nós mesmos os germes da depravação, não ousamos
punir de maneira radical se, punindo, não estamos reprimindo nos outros algo
que queremos de fato reprimir em nós mesmos”.
O
colunista recorre a Freud para responder a pergunta sobre pena de morte, de sua leitora
e, por tabela, do público que lê os seus artigos:
[...] “Freud
descobriu
que, toda vez que somos levados a desistir de alguma satisfação, a raiva de ter
de renunciar se transforma em vontade de policiar e de reprimir os outros. A
obediência às regras de comunidade nos pesa: consolamo-nos e vingamo-nos tanto
mais nos tornamos repressores. Por exemplo, já queimamos ou degradamos
homossexuais e sodomitas como medida de proteção contra nossos próprios desejos
homoeróticos, que julgávamos perigosos para a constituição de “saudáveis”
comunidades cristãs. Em suma reprimimos em nós desejos e fantasias cuja atuação
nos parece ameaçar o convívio social. Logo, frustrados, zelamos pela prisão
daqueles que não se impõem as mesmas
renúncias. Até aqui, tudo bem: reprimir é mesmo parecido com prender — a
vida social pede que confinemos desejos
e
pessoas.
Mas a coisa muda quando a pena é radical, pois há o risco que a morte do
culpado sirva para nos dar a ilusão de liquidar, com ele, o que há de pior em
nós[...]. [...] Em geral, a justiça sumária é isto: uma pressa em suprimir
desejos inconfessáveis de quem faz justiça”.
Foi
dessa forma que Contardo Calligaris, em resposta a sua leitora, como
psicanalista, expôs seu pensamento de que gostaria que a morte dos culpados não
servisse para exorcizar nossas piores fantasias ― sobretudo, porque o exorcismo
seria ilusório.
No
final, o autor faz uma alusão emblemática, convidativa a nossa reflexão: a de
que, talvez, seja possível a existência de crimes hediondos, nos quais, não
reconhecemos nada de nossos desejos reprimidos.
De
tudo que foi escrito pela pena de Contardo Calligaris em seu ensaio, uma
coisa, não podemos negar: a de que a pena
de morte, lá, nos países de religião muçulmana existe de forma
escancarada, enquanto aqui, no mundo “cristão”, ela é envergonhadamente
escondida nos porões do sub-mundo.
12 comentários:
Esse texto leva a refletir sobre esse nosso desejo de 'vingança' como autor explana: com a morte do outro 'mato' ilusoriamente minhas pulsões; não podendo realizar meus desejos reprimidos,cerceio o outro, reprimo, justamente naquilo que me toca. A psicanálise realmente tem exlicação se não para tudo, para a maioria das coisas, hehehe
Levi, "“Freud descobriu que, toda vez que somos levados a desistir de alguma satisfação, a raiva de ter de renunciar se transforma em vontade de policiar e de reprimir os outros. A obediência às regras de comunidade nos pesa: consolamo-nos e vingamo-nos tanto mais nos tornamos repressores."
Concordo plenamente com ele, até faço um revisão no meu passado, quando era vítima de uma drástica
educação e me encontro no mesmo caminho que percorria, com relação a minha forma de agir com os outros. No entanto, vejo o Freud muito radical quando coloca todos os seres humanos com enfermidades em comum.
Esse tal de Freud foi um gênio...rss
Reprimir é impedir o outro de fazer o que nos impedimos a nós mesmo mais queríamos fazer,essa é fácil hehe
Pior pena de morte é aquela ainda praticada por agentes da P2 em suas atividades secretas e por que não dizermos criminosas?
Vejo mais semelhanças entre as penas de morte no Leste e no Oeste. Porém, percebo também que o Ocidente hoje caminha para a abolição dessa violação de direitos humanos. Vários países europeus, estados norte-americanos ena América Latina já não praticam mais execuções legais. Nos estados em que há pena de mrote nos USA, são várias as manifestações contra enquanto tem ainda grupos que vão às ruas festejar a morte de um autor de crime hediondo.
Penso que os motivos da pena de morte não sejam apenas a vontade de afastar o sentimento que incomoda. Há também o lado prático da coisa em eliminar o elemento que não consegue conviver dentro da sociedade.
Nos tempos bíblicos, inexistia a prisão como pena e sim como uma espécie de custódia até o julgamento da pessoa. Não dava para a sociedade sustentar um elemento criminoso que não trabalhava. Logo, o jeito para tirar o mal de Israel era aplicando a pena de morte. Curiosamente, porém, o roubo não chegava a ser punido com um rigor tão forte em que o ladrão deveria restituir quatro vezes mais sem precisar ficar preso. Já o adúltero (o homem que fez sexo com uma mulher comprometida) era morto igual a um assassino ou idólatra.
Inegavelmente, as leis do Alcorão basearam-se mais na Torá do que no Evangelho de Cristo. Este parece que não foi levado em conta por Maomé...
Abraços.
Elídia
Nas cadeias brasileiras os estupradores são executados pelos outros presos, corroborando com o que diz Freud.
Através da prática de eliminação do estuprador os outros presos exercem a pena de morte: uma maneira inconsciente de eliminar o seu próprio desejo de estuprar (ou ser estuprado) – rsrs
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Guiomar
O psicanalista, Contardo Calligaris, realmente, deixa uma lacuna ao dizer que ...é possível que haja crimes hediondos nos quais não se reconheça desejos reprimidos.
Nem tudo é planície. Há pedras no caminho... (rsrs)
Edu
Admiro muito o barbudo, que com seus conceitos pôs a nu a sociedade vienense, na época, altamente puritana. (rsrs)
Gresder
Nem toda repressão é má.
Ela é benéfica quando sublimada através da criação de obras de arte, da escrita, da poesia e da filosofia. Você que escreve e filosofa muito, com certeza, está descarregando a agressividade latente nos profundos porões do obscuro mar do inconsciente. (rsrs)
Meu caro Rodrigo
Duas perguntas, para você que milita no Direito (rsrs):
Atender o que diz os evangelhos: “Quem estiver sem pecado atire a primeira pedra” não pode fazer com que caiamos numa abstinência moral?
O crime de Santa Tereza não é o custo da modernidade de base neo-testamentária onde a rebeldia se tornou a melhor maneira de afirmar a liberdade diante de uma autoridade?
Realmente, Levi, pode surgir aí interpretações equivocadas acerca do dito atribuído a Jesus que citou. Entretanto, se analisarmos o episódio de João 8 (em outros manuscritos esta passagem aparece salvo engano em Lucas), iremos observar injustiças naquele fato que podereia ter se tornado uma execução. A primeira indagação a ser feita é onde estaria o homem adúltero que estava praticando ato sexual com aquela mulher?! Se houve um flagrante, por que não trouxeram preso o homem junto?
Lembrando de Sócrates, sabemos que o filósofo não recusou tomar o seu veneno em obediência às leis de seu país. Porém, com o cristianismo tem-se uma justa e necessária desobediência civil que contesta a hipocrisia! Aliás, é o que se vê na atitude dos apóstolos quando foram proibidos pelo Sinédriod e pregarem usando o nome de Jesus (ver Atos do capítulo 3 e seguintes).
Rodrigão, "Penso que os motivos da pena de morte não sejam apenas a vontade de afastar o sentimento que incomoda. Há também o lado prático da coisa em eliminar o elemento que não consegue conviver dentro da sociedade."
Fico com a sua psicologia rsrs até porque sempre o mal que praticou o outro, foi pior que o meu.
Guiomar
A pena de morte lá no Irã é feita abertamente seguindo a lei de talião ou do V.Testamento. Ao passo que aqui, no Brasil, esse tipo de execução ocorre à porta fechada, nos próprios presídios que, hipocritamente, dizem ser locais de recuperação do preso.
Aqui no nosso país, supostamente cristão, a coisa é mais grave que lá no Irã, pois asexecuções não obedecem a um rito de julgamento prévio, ainda mais com o agravante de serem realizadas sem o conhecimento da família do preso.
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