27 dezembro 2015

Desejo de Estar em Casa





Às vésperas de 2016 ano em que completo sete décadas de vida nunca desejei tanto ficar em casa, em família. Não sei o que reside por trás da onipotência desse desejo que, por ora, me consome.

Há poucos momentos, ouvia minha esposa comentar sobre dois amigos nossos que realizaram o sonho de passar as festas de final de ano na bela, colorida e fosforescente Gramado RS. E fiquei a pensar: quem pode entrar na subjetividade do outro para concluir que, pelo simples fato dele se encontrar longe do seu torrão, esteja impedido de se perceber como se estivesse em sua própria casa? O papa Francisco, recentemente, em visita a Cuba, mesmo longe de sua terra (a Argentina), deu vazão a um sentimento aparentemente paradoxal, mas profundamente humano, quando em uma entrevista a uma emissora cubana, assim se expressou: “me senti em casa, em família”.

Esse desejo de ficar em casa não seria, no fundo, uma vontade de ficar a sós, uma espécie de fuga do ambiente daqueles que nessa época promovem o barulho festivo e ensurdecedor lá fora?
Aos sedentários, dirão os mais jovens: em final de ano, ficar numa rede grudado em um livro é coisa para quem atingiu a idade provecta. Não tiro a razão deles. Dou mão à palmatória. Já não tenho a mesma vitalidade de duas ou três décadas atrás quando, imbuído de um jovial espírito aventureiro, fazia mil estripulias sem demonstrar nenhum cansaço. Como um velho cheio de limitações pode acompanhar as diabruras da juventude errante e esfuziante da pós modernidade? É o caso de se dizer que em uma idade mais avançada, o espírito pode até desejar a errância da juventude, mas o corpo entravado não o acompanha.

Tão nova, minha neta com apenas cinco anos de idade já absorveu o espírito espetaculoso do Natal. Ao mergulhar na rede onde me encontrava absorto na leitura de um livro, disparou com olhos arregalados: “Ô vovô, livro de adulto é tão chato!”. “Por que?” perguntei de imediato. Manu, tomando o livro de minhas mãos, não demorou para dar seu veredicto: “Olha como é chato livro de adulto!: Só tem palavras, só tem palavras!” concluiu, me arrebatando o livro para, de forma rápida e incisiva, folheá-lo bem pertinho de meu nariz. Eu entendi tudo, e lhe dei os parabéns pela tirada inteligente. Natal de velho é muito chato mesmo, não tem a dinâmica alegre e irresistível da meninada, nem as luzes multicoloridas e cintilantes que nessa época tanto prazer dão aos olhos.

Aqui em minha rede tendo um livro a tiracolo, sob um clima meio abafado por dois dias de chuva, com o sol teimoso de verão querendo mostrar de novo a sua cara por entre restos de escuras nuvens, me vejo a pensar, como a vida em um país de dimensões continentais como o nosso é cheia de contrastes. Enquanto muitos longe de casa se sentem em casa, lá no Rio Grande do Sul, bem pertinho da festiva Gramado, mais de mil famílias de trinta e dois municípios passaram o Natal fora de casa: tudo o que tinham obtido com sacrifício foi levado violentamente pelas águas.

A enxurrada, por certo, nesse triste Natal deve ter levado consigo muitos sonhos, até presépios natalinos com seus personagens característicos erigidos em um canto especial das residências das mais de trinta cidades gaúchas atingidas pelo vendaval.

Que pena, ver tantos contrastes em um período tão intensamente desejado pela comunidade cristã. Como a vida continua, volto a minha rede, para continuar a leitura que vinha fazendo quando fui interrompido pela agudeza de espírito de minha neta mais nova. Eu e a “imatura” Manu vivenciamos, em questão de poucos minutos, os polos ambivalentes da indestrutível natureza humana. Plagiando Pascal eu diria: “no coração da criança há razões que a própria razão de um velho avô desconhece”. Como numa época de grande espetáculo, uma tenra criança poderia suportar a chatice das palavras, que naquele momento me entretinha?

Rememorar é uma espécie de repetição para trás”, dizem, com sobrada razão, os poetas e filósofos. De início fiquei incomodado pelo fato de minha neta mais nova ter se jogado abruptamente na rede, sobre mim, atrapalhando a leitura que vinha fazendo. Nos dias atuais tenho ouvido muitas vezes a frase: “Hoje, quem ensina os pais e avós são os filhos e os netos.”
Aprendi que desejar estar em casa é também deixar-se ser incomodado pelo outro. Bem-aventurado incômodo, que me fez viajar em sentido contrário. Me vi criança de novo: Tinha sete anos a mais que Manu, quando ajudava minha mãe nas feiras das quartas e sábados em minha cidade Natal (Alagoa Grande – PB). Passávamos das seis da manhã as quatro horas da tarde vendendo confecções e tecidos em um grande banco de feira. Eu, era o caixa, cuidava de uma gaveta cheia de notas de cruzeiros: recebia o apurado e passava troco aos fregueses. Lá pelas duas horas as vendas escasseavam, e eu aproveitava para me esconder dentro do banco para apreciar e ler artigos da revista “O Cruzeiro” e “Manchete”. Essas revistas eram compradas por quilos para servir de papel de embrulho das roupas adquiridas pelos clientes. Naquele meu refúgio lia artigos de David Nasser, Carlos Lacerda, Mário Mascarenhas, Rachel de Queiroz e outros que não me vêm à lembrança no momento, além de coisas do mundo do futebol. Lembro que, de quando em vez, era despertado de minha concentração literária por reclamações vindas de minha mãe: “Que coisa mais chata, você se enfurna aí dentro banco, e não despacha o freguês que quer pagar a compra e receber seu troco!”. E voltava rápido para a realidade cruel da vida, como quem é arrancado do leito enquanto sonha um bom sonho.


A reprimenda “livro de adulto é tão chato, vovô!” feita por minha neta (terceira geração) a seu avô, foi a senha para que reminiscências de meu passado remoto aflorassem. O acontecimento de hoje, pelo avesso, abrira as portas dos obscuros porões de minha mente, fazendo-me reexperimentar cenas de um desencontro proveniente de uma mesma matriz, ocorrido entre as duas gerações primeiras: a minha e a de minha mãe. 

No livro que o senhor está lendo, vovô, só tem palavras, só palavras!”. Ela demorou só dois ou três minutos. Saiu da rede para, em outro recinto, extasiar-se com as imagens fantásticas de um Natal polarizado no “lado bom”, na telinha do computador. Enquanto me recomponho na rede para continuar a leitura do grosso livro que há um mês tento acabar e não consigo, os três netos se divertem no fantástico mundo digital, que também uso para expor meus textos. Isso é que é progresso: Meu neto mais novo, de 11 meses de idade, com o indicador da mão direita já mexe desajeitadamente na telinha do smartphone.

De tudo, aprendi que estar em casa é também ser testemunha e partícipe de todo avanço tecnológico indutor de desejos. Progresso que o mundo globalizado inventou para nos servir e também para nos desassossegar.



Por Levi B. Santos
Guarabira, 25 de dezembro de 2015

13 dezembro 2015

Do Natal Ao Carnaval ― Um Recesso Bem Brasileiro





Pedro Álvares Cabral, não quis conversa, e bateu o pé: Só saio com minha esquadra pelo vasto mar até a Índia (confundida com as terras de Vera Cruz, que depois se chamaria Brasil), depois das festas do Natal e dos Entrudos em Portugal. Para quem não sabe, a festa do “entrudo” era um desfile de bonecos gigantes feitos de madeira e tecido colorido. A folia que tomava as principais ruas de Portugal, mais tarde, daria origem ao nosso Carnaval.

Quem se aventurar em explorar nossas raízes históricas ou culturais vai, com certeza, culpar Pedro Álvares Cabral pelo longo período de recesso festivo que vai do Natal ao Carnaval. É que o comandante maior que descobriu nossas terrasfoi iniciar suas atividades na colônia dois meses depois do carnaval de Portugal no ano de 1500, como bem diz a marchinha carnavalesca “Quem Foi Que Inventou o Brasil”, de autoria de Lamartine Babo (Cliquem aqui para ouvir essa pérola do carnaval de 1934). Daí então, o longo período de lazer sacro-profano que começa em dezembro e termina na folia momesca de fevereiro ou março, tornou-se intocável na Terra de Santa Cruz. Basta um rápido retrospecto sobre Nossa História para se constatar que as duas maiores datas cívicas ocorreram nos meses de setembro e novembro e não no período que vai de dezembro a fevereiro. Patriotismo (ou patriotada) nunca foi coisa para acontecer em períodos de descanso e lazer espiritual dionisíaco.

A discussão que, por ora, toma conta do país é se o processo turbulento de criação de uma comissão parlamentar para aprovação ou não do ritual de impeachment da presidenta da república, deve ser iniciado, ou não, às vésperas do Natal. Se aprovado, o prolongado trâmite descambará pelos meses de dezembro, janeiro e fevereiro. Para que tal façanha ocorra seria necessário o recesso do Congresso e do Judiciário coisa totalmente impensável. Ninguém, em sua santa consciência, tem força suficiente para romper com a tradição do oportunismo lúdico imbuído em nós pelos colonizadores portugueses d'além mar.

O ministro Fachin, em sua recente fala, já deu a entender que recesso no STF nos meses sagrados de descanso não é coisa para se mexer. Como dezembro marca o ritual sacro do nascimento de Cristo, caiu maravilhosamente bem a marcação para o próximo dia 16 (quarta feira oito dias antes do Natal), da palavra final de nossa Corte Máxima de Justiça, sobre como será o ritual do suposto impeachment. Para que o negócio não contamine o período de recesso, Fachin, já deu o tom de que quer começar e terminar tudo na quarta feira. Naturalmente, espera que seus colegas não inventem de pedir vistas ao processo interposto pelo PC do B.

Ninguém pediu para haver carnaval antecipado nos palcos do Congresso. Que se cuidem então os blocos partidários carnavalescos, pois, como diz a letra do samba, “Felicidade” de Tom Jobim: “De rei ou de pirata ou de jardineira/E(vai) tudo se acabar na quarta-feira”.

Acho muito difícil romper com o longo período festeiro que paralisa as atividades institucionais por dois ou três meses presente oferecido pela primeira autoridade a desembarcar em nossas plagas Pedro Álvares Cabral. O nosso povo nasceu tão lúdico que o historiador e pesquisador da música popular brasileira, José Ramos Tinhorão, em seu livro, “As Festas no Brasil Colonial”, diz que apenas a Igreja contribuía com um terço dos 365 dias do ano, só para atividades fora do trabalho. Não foi à toa que Pero Vaz de Caminha, em sua antológica carta escrita de Porto Seguro de Vera Cruz dirigida ao rei D. Manuel de Portugal, assim se expressou: “Terra para conhecer e também para folgarmos”.

Tenham todos um bom recesso, e, até fevereiro de 2016 (depois do carnaval, é claro). Quem sabe lá se não voltaremos em março de 2016 com a cabeça fria para encerrar de vez mais um ato trágico-cômico da interminável Novela Luso-brasileira iniciada em 1500 que, por ora, nos faz rir e chorar ao mesmo tempo?


Por Levi B. Santos
Guarabira, 13 de dezembro de 2015

Site da Imagem: henriquembranco.blogspot.com.br

09 dezembro 2015

Carta a Mãe





Uma recente carta recheada de lamúrias e descontentamentos atribuída ao vice-presidente da República, Michel Temer, foi motivo de intensa repercussão, as mais humoradas, nas redes sociais. A carta está eivada de expressões daquilo que na psicanálise freudiana denomina-se “ressentimento”. E por falar nesse tipo de afeto, não poderia deixar de expor, aqui, o que diz a Psicanalista da PUC de São Paulo, Maria Rita Kehl, em seu preciosíssimo livro Ressentimento [Editora Casa do Psicólogo – página 19]:

O ressentimento é uma cobrança indireta de um bem cedido ao outro por submissão ou covardia. Instalado no lugar do queixoso o ressentido não se arrepende: acusa. Sua reivindicação não é clara: ele não luta para recuperar aquilo que cedeu e sim para que o outro reconheça o mal que lhe fez. No entanto, não espera obter reparação: o que ele quer é uma espécie de vingança.”

A Psicanalista austríaca, Melanie Klein, também da linha freudiana, dedicou-se de corpo e alma à análise psíquica de crianças, tirando muitas lições da ambivalência já presente no bebê esse pequeno ser que, totalmente dependente da mãe, se lambuza de prazer quando no seu colo é aconchegado e amamentado, e por vezes sente desprazer ou chora de raiva quando deseja mamar e não é prontamente atendido.

Nas redes sociais a carta de Temer refletiu, em suas tiradas carregadas de humor, exatamente o que a psicanálise fala sobre esse afeto, que tem início em nossa tenra infância, como bem demonstra o jornalista, Ricardo Pereira, em seu Twitter: “Já escrevi uma carta semelhante a do Temer. Tinha sete anos. Para o Papai que não trouxe o autorama que pedi”. [#CartaDoTemer]

Maria Rita kehl, em seu expressivo livro, vai mais fundo, evidenciando que esse afeto, mesmo em intelectuais adultos, já bem vividos no campo do relacionamento político, não deixa de pregar-lhes peças, até em público, como foi a missiva do vice de nossa República, que bem poderia ter por título, “Carta a Mãe”:

Uma das condições centrais do ressentimento é que o sujeito estabeleça uma relação de dependência infantil com um outro supostamente poderoso a quem caberia protegê-lo, premiar seus esforços, reconhecer seu valor. O ressentimento também expressa a recusa do sujeito em sair da dependência: ele prefere ser protegido ainda que prejudicado a ser livre, mas desamparado.” [“Ressentimento” página 14].


Por Levi B. Santos
Guarabira, 09 de dezembro de 2015


26 novembro 2015

Nossas Excelências ─ Ou “Cólicas e Náuseas”





Sei que alguns amigos do mundo real e virtual ficarão desapontados pelo fato de, aqui em meu espaço do Google, admitir que em certas noites de insônia, tenho ousado dirigir o controle remoto de minha TV para os canais do Senado e da Câmara. Não sei o que me atrai tanto ficar por longo tempo observando as “Nossas Excelências” excitadas como se estivessem em transe, a distilar suas eloquentes e exageradas retóricas noite adentro.

Interessante é que a repetição modorrenta da expressão “Vossa Excelência” para cá e para lá ocorre tanto nos afagos quanto nos destemperos. Por mais incrível que pareça, chego a vibrar, quando os parlamentares de caráter impulsivo e os sonsos intelectuais, abandonando o velho costume de ler laudas e mais laudas de uma trama urdida por terceiros, sobem a tribuna para falar de improviso, com as mãos livres para os mais extravagantes gestos teatrais.

Tem aqueles imprudentes que, por exagerarem tanto na sua simplicidade fabricada, provocam risos em seus pares. Tem aqueles que levantam as mãos para os céus e, tomados pelo espírito exprimem-se através de vozes dissonantes ou línguas estranhas, como se estivessem engolindo pastel sem previamente mastigá-lo. Tem uns que sem convicções próprias, através do jargão “questão de ordem presidente!” são persuadidos a voltar à tribuna para brilhantemente se desdizer do que tinham minutos antes ardorosamente defendido. Tem aquele que sobe sóbrio à Tribuna com a cara de quem não tem a menor dúvida de que é um gênio ─ exprimindo uma “certeza” que jamais consigo mesmo um dia chegou a conjecturar. Tem os mais dotados (ou mais espertos) que consumidos pelo desejo de ser o mais original, chegam em seus arroubos patrióticos a exalar honestidade, justiça e verdade. Tem aqueles que por não terem nascidos na roda da fortuna, de uma forma compensatória, apregoam que tiveram berço pobre e, por pertencer a uma família honrada, sem beira nem eira, foram jogados no limbo da indiferença. Tem o imediatista ou oportunista que na ânsia de se agarrar a sua prazerosa vantagem particular ignora tudo que é regra ou norma, sem se importar com as consequências do mal que está provocando à sua volta. Tem aquele idealista de ocasião que está sempre a se derramar em queixas, nominando os culpados, pelas crises do dia a dia. Esse, imita o personagem bíblico Jeremias que, por destilar diuturnas lamúrias e ressentimentos contra o seu povo atolado em uma situação de cruel decadência, foi denominadoo profeta das lamentações”.

No Palácio do Congresso Nacional local destinado a se legislar com justiça e sobriedade ―, paradoxalmente, a locução “Vossa Excelência” (que embute auto grau de respeito), tanto pode vir acompanhada de elogios e palavras bondosas, quanto dos mais torpes termos, como: mentiroso, capanga, corrupto, usurpador, pau mandando, etc. É nesse recinto, que o aparentemente puro e sublime aparece ao lado do lixo familiar.
Vossa Excelência extrapolou seu tempo!” grita o presidente da mesa, lá do alto de seu trono. 
Responde o parlamentar que da tribuna, de forma lenta e truncada, pedia socorro para seu Estado, segundo ele, vítima da maior seca dos últimos cem anos: 
Vossa Excelência está sendo injusto e parcial não dando o tempo que me é devido para expor questões que requerem medidas urgentes do Governo!”.
“Vossa excelência acaba, de forma indireta, de me chamar de mentiroso! Me respeite, eu trato todos aqui de forma igual, e não sou seu capanga para ser tratado dessa forma!” dispara o presidente da Casa, com voz artificialmente irada. Alguns da plateia, chegam a atiçar a briga, mas o grupo do abafa faz sinal para que os dois atores participantes encerrem o ato de uma comédia re-esquentada. Como se sabe, lá fora, tudo termina em risos, abraços e convites para “comes e bebes” madrugada adentro.

Nem tudo é confusão no grande teatro do Congresso. Não podemos deixar passar em branco ou negar as peças de grandiloquência que beiram a perfeição   àquelas exaustivamente ensaiadas com o intuito de serem trocadas entre parlamentares amigos da mesma base parlamentar, na forma de antológicos apartes:

 ―“Vossa excelência me concede um aparte?” acena o senador, remexendo-se em sua confortável cadeira.Com a maior honra, venerado amigo responde o aparteado todo orgulhoso lá da tribuna. “Vossa Excelência fique certo de que acaba de descrever uma de suas mais belas ações. Confesso que entre as inumeráveis e decerto contagiantes falas que tive a oportunidade de ouvir nesta honrada casa, jamais vi fluir tanta grandeza de espírito em defesa do tão sofrido povo do nordeste. Sou testemunha cabal de que Vossa Excelência passou ao largo do mercantilismo exalado por alguns, ao fazer de toda sua vida um sacerdócio em defesa dos despossuídos conclui elegantemente o aparteador, cumprindo o trato do “eu te elogio/tu me elogias”, previamente acertado entre eles.

Aqui, em toda sua espetacular grandeza, o pecador e o santo trocam de lado constantemente. Aqui, os santos profissionais sob o pretexto de defender o povo, perdem-se em bizarras e egoísticas reparações. Como crianças, flagradas pelos pais, fazendo o malfeito, partem para a NEGAÇÃO defensiva temendo sofrer o castigo. São muitas as desculpas esfarrapadas, tipo: “Não sou como eles, sou melhor!” “Nunca me desviei da verdade!”. “Sou inocente, eu não sabia!”. “Sou um exemplo a ser seguido!”. E por aí vai.

Penso cá comigo, que o leitor(a) eleitor(a) ganharia mais se pudesse trocar sua novela do horário nobre da noite, pelo drama burlesco, mais íntimo e educativo das TVs Senado e Câmara, patrocinada pela nossa “Pátria Educadora - Mãe Gentil”. O expectador, assim o fazendo, sairia, de uma visão ilusória do real para a fantástica realidade nossa de cada dia. Mesmo que parecesse um sonho aterrador, um pesadelo, ou uma loucura, o ouvinte, na troca de seu canal predileto, iria ter a grande vantagem de experimentar o cômico trágico atormentadoramente real e angustiosamente verdadeiro na pele de nossos representantes, a reverberar em nós. Dizemos: “Que coisa feia, as excelências se xingando, brigando, falando mau do colega, etc”, sem saber que a nossa estranheza se deve mais ao fato de racionalizar que isso não é coisa para ser exposta publicamente. Na verdade, eis o que lá no fundo tencionamos dizer: “temos ética, pois no nosso padrão de comportamento familiar, essas coisas, só são ditas baixinho em casa, sem ninguém estranho por perto a escutar”.

Dou a mão à palmatória: não é fácil a vida de nossos representantes. Eles correm perigo a toda hora, voando semanalmente de seus Estados para Brasília, e vice-versa, sem contar as horas angustiadas que passam presos em aeroportos deste vasto mundão brasileiro, para legislar em nosso favor. E não venham me dizer que eles não são o espelho que, nas altas esferas, estão a refletir toda a gama de nossos mais paradoxais afetos! O apóstolo Saulo de Tarso, fundador do cristianismo, em sua carta dirigida aos Romanos deixou registrada a célebre constatação: “Quando faço o BEM o MAL está comigo”. Pergunto eu, agora, ao leitor: Como seres humanos forjados no caldo cultural comum a todos, somos ou não somos a imagem e semelhança de Nossas Excelências?

Reprovações a mim dirigidas em uma das noites de insônia, levaram-me a refletir sobre o “por quê” do baixo índice de audiência dos canais que transmitem as sessões do Congresso Nacional, de terça a quinta feira:

― “Puxa, você está assistindo essa porcaria de canal!” ─ disparou uma pessoa do meu convívio. Como você suporta ver essa podridão?!” ─ concluiu, e saiu apressado da sala onde no sofá eu estava bem acomodado assistindo a TV Senado pulando de vez em quando para a TV Câmara e vice-versa.

Que sentido metafórico eu poderia colher das palavras porcaria” e “podridão sacudidas instantaneamente na minha cara? Lembrei-me vagamente do desafio feito por Erasmo, em “O Elogio da Loucura”: “Remova a parcialidade louca de cada homem por si próprio, e ele federá nas suas próprias narinas!”. Meu amigo demonstrara irritação ao considerar nojeira o que eu estava a assistir pela televisão naquele momento. É a tal coisa: caímos numa espécie de auto-engano ao pensar que o mal cheiro é sempre o excremento do outro.

Desliguei a televisão e, depois de pensar e muito refletir, saí triste para conciliar o sono em meu quarto. As vísceras da sociedade desse vilipendiado país que estavam ali sendo expostas em toda sua crueza na TV, provocaram asco em meu parente e fizeram revolver as minhas próprias entranhas, sob a forma de cólicas e náuseas.

Antes de cair no sono, veio a minha mente a expressão atribuída a , personagem bíblico que se tornou paradigma dos nossos afetos tão humanamente paradoxais:

De sorte que o homem se consome como uma coisa podre” [Jó 13: 28]



  Por Levi B. Santos
Guarabira, 26 de novembro de 2015

16 novembro 2015

Imprensa Enfrenta Mais Um Retrocesso





Jornalistas estão de orelha em pé com a lei aprovada no Congresso e recentemente sancionada pelo Governo Federal, que estabelece ritos sumários para que ofendidos ou agravados através de jornais, revistas, Tvs, blogs, rádios e demais meios de comunicação tenham, em tempo relâmpago, seu direito de resposta. Muitos já consideram que por trás da resposta do ofendido no curto espaço de 24 horas, se esconde uma forma sutil e disfarçada de censura.

O ex-ministro do STF, Carlos Ayres Brito, um dos responsáveis pela derrubada da famigerada Lei de Imprensa em 2009, veio a público esta semana para dizer que o artigo sétimo da Lei sancionada pode ser questionado. Concluiu ele: “O artigo que regulamenta alguns dos prazos é de muito duvidosa constitucionalidade, por que parece constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística”. Para o deputado, advogado e jornalista Miro Teixeira, a classe política legislou em causa própria.

Vejo o projeto com muita preocupação porque ele traz alguns elementos que podem não favorecer a liberdade de manifestação e o próprio direito de resposta. O primeiro deles é a falta de definição clara de quem tem legitimidade para apresentar o direito de resposta. Evidentemente, que, se aprovado, a própria jurisprudência terá de suprir esta ausência, que pode gerar inseguranças até para quem escreve” afirmou Marcos da Costa (presidente da OAB de São Paulo), ao analisar atentamente o projeto de lei no mês passado. [Vide Link]

A jornalista Miriam Leitão na sua coluna do jornal “O Globo” de sábado, dia 14, assim se referiu ao recente decreto presidencial: “A norma sancionada pela presidente Dilma faz a Lei de Imprensa do governo militar parecer democrática”. Para ler na íntegra o artigo “Ameaça à Imprensa” da jornalista da GloboNews é só Clicar aqui.

Coincidência ou não, a legalização dessa nova versão da mordaça, foi uma espécie de presente de grego, justamente por chegar aos nossos ouvidos em plena comemoração do feriado da proclamação da República. Na verdade, o novembro trágico que, por ora, estamos a vivenciar é um repeteco do que ocorreu em novembro de 1889, quando, sem a presença do povo nas ruas, os Chefes dos Partidos Liberal e Conservador através de conchavos em tudo semelhantes aos acordões praticados hoje, uniram-se no propósito de não serem incomodados por opiniões contrárias às suas.

Como quem caminha em círculo estamos, na realidade, vivendo o ontem. Para confirmar o que digo, basta acessar o site Infoescola, da “Pátria Educadora”, na parte que discorre sobre o nosso primeiro Presidente Deodoro da Fonseca. Vejam o que lá está escrito: “Deodoro ganhou antipatia da imprensa, pois os acusavam de fazer propaganda anti-republicana, e chegou ao extremo de instituir a censura, mostrando assim, todo o autoritarismo do novo governo.”

Na época da proclamação da República o Jornal “O Estado de São Paulo” já existia, além de mais 74 jornais, de norte a sul do país. Apesar do esforço governamental de querer só elogios por parte da imprensa, o jornalismo daquele tempo se destacava pelo destemor ao penetrar nos escaninhos dos feudos políticos, denunciando suas tramas, conluios e transações tenebrosas.

Seria ótimo que os semeadores de retrocessos dos dias atuais voltassem ao passado, não para reforçar seus idealismos retrógrados, mas para ouvir o que o escritor Machado de Assis (1839 — 1908), sábio conhecedor dos personagens da nascente república, afirmou do alto de seus cinquenta anos de idade:

Houve uma coisa que fez tremer as aristocracias mais do que os movimentos populares, o jornalismo.”




Por Levi B. Santos
Guarabira, 16 de novembro de 2015

Site da Imagem: sinproepdf.org.br

12 novembro 2015

Esconder Para o Outro Não Sofrer




Negar Para Não Sofrer"       
   
Essa arte eu aprendi logo cedo
Aprendi desde os tempos das primeiras letras
Negar para não sofrer
Já adulto, agindo como o débil aluno de outrora
Fiquei tenso, de rosto avermelhado
Quando Ela me perguntou:
Estás a esconder algo de mim?”
Neguei para não sofrer.

[Levi B. Santos]



Os filhos de uma cliente minha compareceram ao consultório com a finalidade de receber o resultado anátomo-patológico de uma biópsia de colo uterino que, 40 dias atrás, eu tinha realizado em sua mãe. No recinto, ao notar a ausência da senhora que tinha se submetido ao procedimento preventivo, perguntei de imediato para a filha que, pelo jeito de se portar, denunciava ser a responsável pela paciente.

Por que não trouxe sua mãe para eu explicar o que deu no resultado do seu exame?

Antes de me responderem, a tríade de irmãos de sangue, em silêncio, confabularam pelos olhos, fazendo com que eu percebesse que algo de suma importância estavam combinando. O perfil físico da filha demonstrava claramente que tinha mais idade que seus dois irmãos. Tomada por um certo nervosismo, evidenciado pelo esfregar constante das suadas mãos, fez sinal de que ia me falar em segredo, ao mesmo tempo que cochichava ao ouvido de minha auxiliar, para que a mesma se ausentasse da sala por um pouquinho de tempo.

Doutor, a gente quer saber se o exame de minha mãe deu “aquela doença”(o sempre impronunciável, câncer)! Nós todos, de comum acordo, viemos aqui para dizer ao senhor que nossa mãe não pode saber que tem essa maldita doença ― disparou a filha, meio trêmula e com olhos esbugalhados.

O senhor promete, diante de Deus e da Virgem santíssima não revelar nada sobre sua doença? É por amor e para que ela não sofra tanto que resolvemos tomar esta decisão arrematou a filha, ansiosa pela minha aquiescência.

Tudo bem, tudo bem! Se é assim que vocês desejam, serei comedido em minhas elucidações ― respondi bem a vagar, como quem caminha em terreno escorregadio.

Ocorrências como a que acabei de narrar, não são raras e têm me levado a acuradas reflexões. Nas minhas longas leituras, tenho procurado explicações sobre esse mecanismo psíquico da “Negação” que, por ser de natureza inconsciente, é projetado no OUTRO (ente querido), objeto de nosso suposto amor. Se pudéssemos entender que a criança que fomos um dia continua encarnada no fundo obscuro dos porões de nossa mente, iríamos por certo concluir que a determinação tomada pela família em esconder a doença fatal de sua progenitora se enquadraria naquilo que os estudiosos da Psique denominam “Auto-engano”, ou seja, quando racionalizamos que se deve esconder de um ente querido nosso a doença grave de que é portador, sob a alegação de que é para evitar seu sofrimento, na verdade, estamos, por um processo de identificação com o doente, nos deslocando inconscientemente no sentido de evitar o nosso próprio desprazer. Não era assim que agíamos quando na tenra infância, para não sofrer castigos, evitávamos contar aos nossos pais as maldades e atos considerados proibitivos ou vergonhosos que praticávamos junto aos coleguinhas de escola?

Acessando as memórias de nossa infância iremos, fatalmente, perceber a quantidade de fatos maus ou desabonadores que escondíamos dos nossos genitores para não sofrer sua reprovação dura que, quase sempre, resultava em surras ou privação de determinadas liberdades. Às vezes, nossos pais até que procuravam adivinhar o que lá no íntimo escondíamos, quando em casa, depois de voltar da escola, aparecíamos cabisbaixos e desconfiados pelo canto das paredes. “Você está com cara de quem está escondendo algum malfeito na escola, seu moleque? Desembuche logo! ― inquiria o pai ou mãe com um ar grave. E para não sofrer negávamos tudo com a cara mais deslavada do mundo.

O “mal” ou doença daquela senhora, segundos os filhos, ela não poderia saber, por hipótese nenhuma. Resolvi nada interpor sobre o acordão engendrado entre eles. Fiquei a perguntar a mim mesmo: se pelo menos, os filhos da desditosa mulher, hoje já bem maduros, pudessem entender que o mal praticado e ocultado da mãe ou do pai, no tempo de sua meninice, sob forma de um sentimento culposo, estava naquela ocasião a aflorar. Se eu pudesse, pelo menos, aclarar o que estava por trás de suas racionalizações (ou desculpas esfarrapadas), usando o pouco do que tenho aprendido na área da Psicologia. Em criança, por diversas vezes, para não sofrer, enganei meus pais. E agora, estava eu diante de adultos-crianças que numa linguagem defensiva esboçavam as mesmas reações de um passado que não mais lembravam. Por terem ludibriados seus pais na aurora de suas vidas, os filhos sentimentalmente interligados, de forma unânime, estavam ali tramando em meu consultório apagar ou esconder a sombra de um passado, que o mal incurável de sua terna mãe fizera emergir de suas próprias entranhas psíquicas indestrutíveis.

Eu sabia que de nada adiantaria entrar no terreno das elaborações de cunho psicanalítico, tentando argumentar que por trás do imediatismo aparentemente honesto e justo das resoluções que por ora estavam tomando, algo gravado indelevelmente nos arquivos da vida mental infantil, tinha sido reativado, fazendo com que agissem daquele modo.

Pascal, admirável e profundo pensador do século XVII, já dizia que havia no coração razões que a própria razão desconhecia. Mas será que numa consulta de meia hora de duração eles poderiam compreender como a mente funciona? Poderiam eles intuir que os sentimentos da antiga criança que, para não sofrer escondia da mãe ou do pai àquilo que considerava um mal ou coisa altamente reprovável, estavam ali reverberando em suas atitudes e gestos aparentemente generosos?

Será que eles acreditariam que não estavam tentando proteger a sua mãe, mas sim, tentando se resguardar da intensa ansiedade provocada por um sentimento ilhado em suas profundezas psíquicas que diante daquela situação conflitante, voltara a incomodar?

Na música popular brasileira, o entrelaçar da filosofia e da psicologia exprime ou resume maravilhosamente tudo que eu tentei explicitar nesse curto ensaio. É o que mostra esse pedacinho de apenas duas linhas da emblemática canção Revelação de Clésio e Clodô, magnificamente interpretada pelo cantor cearense Fagner:

Quando a gente tenta/De toda maneira/Dele se guardar/Sentimento ilhado/Morto, amordaçado/Volta a incomodar”.



Por Levi Bronzeado dos Santos
Guarabira, 12 de novembro de 2015

05 novembro 2015

Na “Pátria Educadora” o SIMPLES é Sinônimo de COMPLICADO





Após o longo período de “descanso” (para não dizer o contrário) proporcionado pelo feriadão que culminou com o dia de Finado, pensei, e logo desisti de fazer uma relação das melhores e risíveis frases da nossa presidenta em “exercício”. Propositadamente, coloquei aqui as palavras descanso e exercício entre aspas. Quanto a primeira palavra frisada, devo dizer que meu descanso foi por água abaixo, pois passei a maior parte do tempo (com noites mal dormidas), quebrando a cabeça com o famigerado e mal elaborado site eSocial que custou a bagatela de seis milhões e seiscentos mil reais aos nossos já confiscados bolsos. O site governamental, largamente propagado durante o ano de 2014 que pretendia com o sistema “SIMPLES”, “descomplicar” a arrecadação de impostos dos sofredores contribuintes da classe média, gorou, como se diz na gíria nordestina, quando uma bombinha junina falha. Vivendo uma época de tanto desvio de dinheiro público, fiquei a pensar com os meus botões sobre o desperdício de tanta grana, principalmente depois do anúncio, em cadeia de rádio e televisão, feito pelas (des)autoridades de nossa frágil republiqueta, dando conta de que o site alinhavado pelo governo era INEFICIENTE ou IMPRESTÁVEL. O (des)governo chegou ao ponto crítico de não aparecer na TV para se desculpar, com a bandeira nacional estampada no fundo da tela, como comumente ocorre em casos de desastres naturais e serviços mal prestados à nação. Quanto ao segundo termo grifado exercício ―, coisa que não é mais novidade, se deve ao fato de a embarcação da Terra de Santa Cruz se encontrar à deriva, ou sem comandante há vários meses.

Mas o nosso hino nacional, tão inocentemente cantado pelas crianças, fala de um mãe gentil e de uma pátria amada. Perdoem-me o acesso de riso que tive agora: é que diante de tantos desencontros, balbúrdias e falta de seriedade por parte dos que deviam zelar pela coisa pública, me pus a imaginar que parte do refrão do hino do Ypiranga poderia, diante do descalabro reinante em nossas instituições, ser muito bem substituído, por “...dos filhos deste solo és mãe hostil, pátria desalmada, Brasil”.

Na Pátria Educadora, incessantemente propagandeada nos meios de comunicação, quando uma autoridade fala de improviso, os mais impensáveis silogismos acabam se tornando regra. A expressão “Homo sapiens” (ser humano) sem medo do ridículo de ferir a língua portuguesa, é considerada de cunho machista pelos educadores no Poder. A criadora do slogan “Pátria Educadora”, em um arroubo de idealismo igualitário deu “exemplo” de que não é preconceituosa, quando em um dos seus célebres discursos criou a expressão “mulher sapiens[Vide link].

Na Pátria Educadora, quem estuda História sabe muito bem que cenas hilariantes como as que estamos assistindo atualmente no grande Teatro dos Poderes da República são apenas um repeteco ou eco da longa comédia iniciada nos tempos de Dom João VI. Tem se tornado até comum entre nós, o dito: “Ah, isso faz parte do nosso DNA cultural”.

Só se conhece uma pessoa de verdade, no exercício do Poder” disse certa vez, William Shakespeare. Naturalmente, o dramaturgo inglês (1564 1616) queria evidenciar que nas esferas de poder de uma nação não havia quem resistisse ao fascínio de lutar renhidamente pelos melhores papéis na grande Comédia dos Poderes em torno do trono imperial.

O livro “1808” de Laurentino Gomes (lançado em 2007) traz um retrato fiel da época em que nossos principais atores vindos do além- mar deram início a trágica comédia, que hoje, com ingredientes mais picantes, estamos a revivenciar. Naquele tempo, Carlota Joaquina (que fazia o diabo, mandando e desmandando), de temperamento irascível e extremamente complicada a ponto de não se relacionar normalmente com os outros do seu vasto reino, era temida por seus súditos que, mesmo a contragosto, a saudavam com um “Deus Salve a Rainha!”.


P.S.:


CLIQUE AQUI para ouvir o comentário de Mirian Leitão na Rádio CBN, sobre a Trapalhada do Governo que violou, por incompetência, o direito de folga do contribuinte durante o feriadão de Finado, deixando-o por horas a fio de frente para uma telinha de computador a esperar o funcionamento de um programa esdrúxulo e inoperante que torrou nada mais nada menos que R$ 6.600,00 dos nossos suados impostos. ISSO É UMA VERGONHA!!!



Por Levi B. Santos
Guarabira, 05 de novembro de 2015




01 novembro 2015

Dostoiévski Vai ao Cemitério


Túmulo de Dostoiévski – São Petersburgo - Rússia


O dia dedicado aos mortos, neste ano, caiu numa segunda feira, proporcionando aos vivos um feriadão em pleno verão. Embora, muitos tenham descambado para um “descanso” de três dias em fazendas, nas praias sob um sol escaldante, em retiros espirituais, em hotéis, bares comunitários, ou mesmo por falta de opção terem que permanecer no deserto de suas próprias casas, creio que uma boa parte da população deve ter reservado esse espaço de tempo para, tradicionalmente, visitar os túmulos dos entes queridos, de saudosa memória.

Eu, particularmente, não costumo ir ao cemitério na festa destinada aos mortos, principalmente pelo fato de me sentir incomodado com o intenso alvoroço reinante no local. É que em ambiente dessa natureza não consigo concentrar meu pensamento na memória do ente querido que partiu para outra, e, por mais que me esforce, é como se estivesse participando do concerto de uma orquestra sinfônica no meio de uma barulhenta feira.

Acho melhor ter o silêncio por companhia e pensar nos que se foram, longe do barulho da multidão e dos ambulantes a oferecerem com toda a força de seus pulmões velas, grinaldas, ramos de flores, misturado a picolés, refrigerantes, salgadinhos e outras extravagantes guloseimas. Não são raros os casos de encontros casuais entre amigos que raramente se veem em torno do túmulo do morto homenageado. Surpreendidos com o inédito da ocasião, os vivos começam a puxar o fio das conversas sem fim guardadas ou esquecidas na poeira do tempo, e, só depois de rumarem para uma cervejinha bem geladinha em um barzinho da periferia da cidade, é que vão se dar conta de que esqueceram o principal  lembrar com reverência seus mortos.

Mas me permitam que eu explique o que tem a ver esse meu falatório com o título que encabeça o ensaio “Dostoiévski Vai ao Cemitério”:

Fiódor Dostoiévski (1821 1881), autor dos clássicos “Crime e Castigo”, “O Idiota” e “Diários do Subsolo”, é um dos maiores romancistas russos, e existencialista mundialmente conhecido pela sua crítica mordaz às práticas religiosas de seu tempo.

Esboçarei aqui uma sinopse do magistral conto BOBÓK, no qual Dostoiévski faz a figura de um bêbado sofredor de alucinações, na suposição de que os mortos, longe do mundo moral que os detinha quando vivos eram, podiam agora, por de lado qualquer tipo de vergonha e contar entre eles seus casos escabrosos, de acordo com o preceito bíblico que diz Deus não é Senhor dos mortos...”. Em analogia a essa referência bíblica, no seu último romance “Os Irmãos Karamazóv”, o autor russo cunhou a célebre expressão: “Se Deus Não Existe, Tudo é Permitido”. Expressão essa, não corroborada pelos analistas, pois se Deus (o Inconsciente, o Involuntário dostoieviskiano) não existe, nada é permitido. Mas, sem mais delongas, vamos a sinopse prometida:

Ivan Ivánitch, sem mais nem menos, resolveu acompanhar um enterro. Já era noite quando os amigos e familiares do defunto se retiraram do cemitério. Ivan, por se encontrar visivelmente cansado e embriagado, intencionou descansar e dormir ali mesmo no cemitério, sobre a laje fria de uma sepultura. De repente, o bêbado começa a ouvir vozes abafadas vindas dos túmulos ao seu redor. Os mortos se identificavam e conversavam entre si, como se a consciência humana continuasse a existir por algum tempo depois da morte. Diferente das condições terrenas, tinham agora, total liberdade de falar de segredos e causos, nunca revelados quando estavam vivos:

Mas por enquanto eu quero é que não se minta. É só o que quero, porque isso é o essencial. Na terra é impossível viver e não mentir, pois vida e mentira são sinônimos; mas, com o intuito de rir, aqui não vamos mentir. Aos diabos, ora, pois o túmulo significa alguma coisa! Todos nós vamos contar em voz alta as nossas histórias já sem nos envergonharmos de nada. Serei o primeiro de todos a contar a minha história […]. Abaixo as cordas, e vivamos esses dois meses na mais desavergonhada verdade.” [Bobók página 35]

Em um determinado momento, nauseado pelo forte odor vindo de corpos em decomposição, Ivan, involuntariamente dá um sonoro espirro, o bastante para calar a conversa ou prosa entre os mortos, ficando todos em um silêncio sepulcral. Acordado de sua alucinação, o bêbado, enfim, conjectura com seus botões:

Não acho que tenham sentido vergonha de mim: haviam resolvido não se envergonhar de nada! Esperei uns cinco minutos e … nem uma palavra, nem um som. Também não dá para supor que tenham temido ser denunciados à polícia; porque o que a polícia pode fazer neste caso? Concluo involuntariamente que, apesar de tudo, eles devem ter algum segredo desconhecido dos mortais, e que eles escondem cuidadosamente de todo mortal.” [Bobók página 37].



Nesse feriadão, pelo menos na imaginação, Dostoiévski, em sua história carregada de metáforas, nos leva ao cemitério para refletir mais sobre o Outro razão maior do nosso VIVER.

Sobre o conto “Bobók”, interpretando pelo avesso o dito de Dostoiévski, diria, tempos depois, o famoso psicanalista, Jacques Lacan, que fez a releitura das obras de Freud:

Se Deus não existe, nada é permitido”.

Lacan interpreta ou assimila Deus, como o Outro ou o “Grande Outro”, simbolizado pelo espirro nos delírios de Ivan, que faz calar os “mortos-vivos”, habitantes dos obscuros porões de nossa Psique ― tal qual um espelho a refletir a nossa verdade envergonhada.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 01 de novembro de 2015

Link da Imagem: https://pt.wikipedia.org/