Às
vésperas de 2016 ─ ano em
que completo sete décadas de vida ─
nunca desejei tanto ficar em casa, em família. Não sei o que reside
por trás da onipotência desse desejo que, por ora, me consome.
Há
poucos momentos, ouvia minha esposa comentar sobre dois amigos nossos
que realizaram o sonho de passar as festas de final de ano na bela,
colorida e fosforescente Gramado ─
RS. E fiquei a pensar: quem pode entrar na subjetividade do outro
para concluir que, pelo simples fato dele se encontrar longe do seu
torrão, esteja impedido de se perceber como se estivesse em sua
própria casa? O papa Francisco, recentemente, em visita a Cuba,
mesmo longe de sua terra (a Argentina), deu vazão a um sentimento
aparentemente paradoxal, mas profundamente humano, quando em
uma entrevista a uma emissora cubana, assim se expressou: “me
senti em casa, em família”.
Esse
desejo de ficar em casa não seria, no fundo, uma vontade de ficar a
sós, uma espécie de fuga do ambiente daqueles que nessa época
promovem o barulho festivo e ensurdecedor lá fora?
Aos
sedentários, dirão os mais jovens: em final de ano, ficar numa rede
grudado em um livro é coisa para quem atingiu a idade provecta. Não
tiro a razão deles. Dou mão à palmatória. Já não tenho a mesma
vitalidade de duas ou três décadas atrás quando, imbuído de um
jovial espírito aventureiro, fazia mil estripulias sem demonstrar
nenhum cansaço. Como um velho cheio de limitações pode acompanhar
as diabruras da juventude errante e esfuziante da pós modernidade? É
o caso de se dizer que em uma idade mais avançada, o espírito pode
até desejar a errância da juventude, mas o corpo entravado não o
acompanha.
Tão
nova, minha neta com apenas cinco anos de idade já absorveu o
espírito espetaculoso do Natal. Ao mergulhar na rede onde me
encontrava absorto na leitura de um livro, disparou com olhos
arregalados: “Ô vovô, livro de adulto é tão chato!”.
“Por que?” ─ perguntei
de imediato. Manu, tomando o livro de minhas mãos, não
demorou para dar seu veredicto: “Olha como é chato livro de
adulto!: Só tem palavras, só tem palavras!” ─
concluiu, me arrebatando o livro para, de forma rápida e incisiva,
folheá-lo bem pertinho de meu nariz. Eu entendi tudo, e lhe dei os
parabéns pela tirada inteligente. Natal de velho é muito chato
mesmo, não tem a dinâmica alegre e irresistível da meninada, nem
as luzes multicoloridas e cintilantes que nessa época tanto prazer
dão aos olhos.
Aqui
em minha rede tendo um livro a tiracolo, sob um clima meio abafado
por dois dias de chuva, com o sol teimoso de verão querendo mostrar
de novo a sua cara por entre restos de escuras nuvens, me vejo a
pensar, como a vida em um país de dimensões continentais como o
nosso é cheia de contrastes. Enquanto muitos longe de casa se sentem
em casa, lá no Rio Grande do Sul, bem pertinho da festiva Gramado,
mais de mil famílias de trinta e dois municípios passaram o Natal
fora de casa: tudo o que tinham obtido com sacrifício foi levado
violentamente pelas águas.
A
enxurrada, por certo, nesse triste Natal deve ter levado consigo
muitos sonhos, até presépios natalinos com seus personagens
característicos erigidos em um canto especial das residências das
mais de trinta cidades gaúchas atingidas pelo vendaval.
Que
pena, ver tantos contrastes em um período tão intensamente desejado
pela comunidade cristã. Como a vida continua, volto a minha rede,
para continuar a leitura que vinha fazendo quando fui interrompido
pela agudeza de espírito de minha neta mais nova. Eu e a “imatura”
Manu vivenciamos, em questão de poucos minutos, os polos
ambivalentes da indestrutível natureza humana. Plagiando Pascal eu
diria: “no coração da criança há razões que a própria razão
de um velho avô desconhece”. Como numa época de grande
espetáculo, uma tenra criança poderia suportar a chatice das
palavras, que naquele momento me entretinha?
“Rememorar
é uma espécie de repetição para trás”, dizem, com sobrada
razão, os poetas e filósofos. De início fiquei incomodado pelo
fato de minha neta mais nova ter se jogado abruptamente na rede,
sobre mim, atrapalhando a leitura que vinha fazendo. Nos dias atuais tenho ouvido muitas
vezes a frase: “Hoje, quem ensina os pais e avós são os filhos
e os netos.”
Aprendi
que desejar estar em casa é também deixar-se ser incomodado pelo
outro. Bem-aventurado incômodo, que me fez viajar em sentido
contrário. Me vi criança de novo: Tinha sete anos a mais que
Manu, quando ajudava minha mãe nas feiras das quartas e sábados em
minha cidade Natal (Alagoa Grande – PB). Passávamos das seis da
manhã as quatro horas da tarde vendendo confecções e tecidos em um
grande banco de feira. Eu, era o caixa, cuidava de uma gaveta cheia
de notas de cruzeiros: recebia o apurado e passava troco aos
fregueses. Lá pelas duas horas as vendas escasseavam, e eu
aproveitava para me esconder dentro do banco para apreciar e ler
artigos da revista “O Cruzeiro” e “Manchete”. Essas revistas
eram compradas por quilos para servir de papel de embrulho das roupas
adquiridas pelos clientes. Naquele meu refúgio lia artigos de David
Nasser, Carlos Lacerda, Mário Mascarenhas, Rachel de Queiroz e
outros que não me vêm à lembrança no momento, além de coisas do
mundo do futebol. Lembro que, de quando em vez, era despertado de
minha concentração literária por reclamações vindas de minha
mãe: “Que coisa mais chata, você se enfurna aí dentro banco,
e não despacha o freguês que quer pagar a compra e receber seu
troco!”. E voltava rápido para a realidade cruel da vida, como
quem é arrancado do leito enquanto sonha um bom sonho.
A
reprimenda ─“livro de
adulto é tão chato, vovô!” ─
feita por minha neta (terceira geração) a seu avô, foi a senha
para que reminiscências de meu passado remoto aflorassem. O
acontecimento de hoje, pelo avesso, abrira as portas dos obscuros
porões de minha mente, fazendo-me reexperimentar cenas de um
desencontro proveniente de uma mesma matriz, ocorrido entre as duas gerações primeiras: a minha e a de minha mãe.
“No
livro que o senhor está lendo, vovô, só tem palavras, só
palavras!”. Ela demorou
só dois ou três minutos. Saiu da rede para, em
outro recinto, extasiar-se
com as imagens fantásticas de um Natal polarizado no “lado bom”,
na
telinha do computador.
Enquanto me recomponho na
rede para continuar a leitura do grosso livro que há um mês tento
acabar e não consigo,
os três netos se divertem no fantástico mundo digital, que também
uso para expor meus textos. Isso é que é progresso: Meu neto mais novo,
de 11 meses de idade, com o indicador da mão direita já mexe
desajeitadamente na telinha do smartphone.
De
tudo, aprendi que estar em
casa é também ser testemunha e partícipe de todo avanço
tecnológico indutor de desejos. Progresso
que o mundo globalizado
inventou para nos servir e também para
nos desassossegar.
Por Levi B.
Santos
Guarabira, 25
de dezembro de 2015