09 novembro 2012

Nietzsche e a Universidade – Por Luiz Pondé





Sou um leitor assíduo dos ensaios que Luiz Felipe Pondé escreve toda Segunda Feira no caderno de cultura ―ILUSTRADA ―, da Folha de São Paulo.
O Pernambucano Pondé, para quem ainda não conhece, é escritor, filósofo, psicanalista, ensaísta e professor da PUC – SP e da USP. 

Suas duas últimas obras publicadas pela Editora LeYa. “Contra Um Mundo Melhor” e o “Guia Politicamente Incorreto da Filosofia” são uma coletânea de primorosos ensaios que levam o leitor a refletir de forma profunda sobre a condição humana na pós-modernidade.

O ensaio por ele escrito na Folha de São Paulo, nessa última segunda feira (dia 05), faz uma ponte entre o mal estar que extravasa dos escritos de Nietzsche e o pasteurizado ensino universitário da atualidade.  “O Filósofo do Martelo na Academia”, é o titulo desse maravilhoso texto de Pondé, inspirado em um fragmento reflexivo de Nietzsche.  Com os devidos créditos, nesse meu recanto do Google, republico-o para degustação dos leitores amigos e amantes da boa literatura.

O Filósofo do Martelo na Academia

“Eu lamento agora que naqueles dias eu ainda não tinha coragem (ou imodéstia?) para permitir a mim mesmo, de todas as formas, minha própria língua individual...”

“Estas palavras são de Friedrich Nietzsche (1844-1900), em tradução livre, do seu "Tentativa de Autocrítica", opúsculo escrito por ele como autocrítica, em 1886, ao seu livro "Nascimento da Tragédia" (primeira edição em 1872). A edição de 1886 ganhou como acréscimo ao título o subtítulo "Helenismo e Pessimismo".

Nietzsche foi minha primeira paixão na faculdade de filosofia da USP. Na época, recém-saído da medicina e em formação para ser psicanalista, o que nunca aconteceu, eu colocava em diálogo Nietzsche e Freud.

O filósofo do martelo me é inesquecível e continuo pensando com o martelo até hoje. Vocação é destino. Este trecho específico carrega em si muito do que Nietzsche significa para um filósofo profissional como eu, em constante mal-estar com o que a vida universitária se transformou, em épocas de produtividade industrial do ensino superior.

A fala de Nietzsche vai de encontro ao modo como somos formados, não sem razão, nas boas faculdades de filosofia: somos formados para não sermos originais. Hoje, entendo que qualquer originalidade possível em filosofia é algo conquistado a duras penas, assim como a santidade ou os movimentos precisos de uma dança --metáfora cara ao filósofo do martelo.

Lembro-me de uma das primeiras aulas em que um dos grandes professores que tive nos disse algo assim: "Você não está aqui para achar nada, antes de achar algo estude, e descobrirá que muita gente já pensou o que você pensa, e muito melhor do que você, antes de você."

Esta dureza acaba por fazer de nós pessoas menos opinativas e mais rigorosas, e isso é sem dúvida fundamental. Esta é a diferença entre pensar filosoficamente e pensar como senso comum. Vale lembrar que do ponto de vista da filosofia, as ciências humanas em geral são senso comum.

Rigor nada tem a ver com o que a academia se tornou com o passar dos anos: um antro de política lobista e de burocracia da produtividade a serviço da morte do pensamento. A universidade está morta e só não sente o cheiro do cadáver quem tem vocação para se alimentar de lixo. Fosse Kafka vivo e escrevesse um conto sobre nós, acadêmicos, nos colocaria com cara de ratos.

Imaginem Nietzsche preenchendo o currículo Lattes, uma plataforma informática que supostamente democratiza o acesso à produtividade da comunidade acadêmica, ao mesmo tempo em que normatiza e quantifica esta produtividade. Na prática, o Lattes serve para nos tomar tempo (sempre dá pau) e acumular platitudes e repetições que visam a quantificação de um quase nada de valor.

Agora imaginem Nietzsche às voltas com relatórios anuais da Capes, que junto com o Lattes, institucionaliza e quantifica esta mesma produtividade de um quase nada de valor.
Não existiria filosofia se nossos patriarcas, de Platão a Nietzsche (para citar dois grandes), tivessem que preencher o Lattes, fazer relatórios Capes ou serem "produtivos". Todos seriam o que, aos poucos, nos transformamos: burocratas mudos da própria irrelevância. Analfabetos do pensamento.

Uma das formas de sobreviver a este processo de produtividade de massa é obrigar nossos alunos a pesquisar aquilo que não querem, de uma forma que não querem, a fim de garantir verbas institucionais de pesquisa em grande escala. Esmagamos a criatividade e as intenções dos alunos fazendo deles uma infantaria estatística. A universidade mente: quer formar rebanhos dizendo que defende a liberdade de pensamento.

Lutamos dia a dia para conseguirmos sobreviver aos montes de formulários e demandas do mundo dos ratos. A universidade aos poucos sucumbe aos efeitos colaterais de um mundo que, como diria Nietzsche, vomita "ideias modernas". Os processos de democratização do saber, como suspeitava nosso filósofo, são processos de produção de nulidades em grandes quantidades.

Mais do que nunca é urgente sermos corajosos e imodestos para acharmos nossa própria língua individual”.

Luiz Felipe Pondé
Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na versão impressa de "Ilustrada".

Guarabira, 09 de novembro de 2012
Site da Imagem: museudaciencia.org

3 comentários:

Isaias disse...

Grande Levi e grande Pondé! Realmente o mundo acadêmico padece de inteligências maiúsculas, de pessoas que de algum modo conseguem pensar por si próprias, remando contra a maré da mediocridade conveniente e covardemente segura.

Abraço!

Levi B. Santos disse...

É, nobre Isaías

Quando será que a elite universitária ficará liberta do seu acomodado maniqueísmo, como esse de querer impor aos alunos, regras técnicas e normas intocáveis que mais parecem receitas prontas de bolo? (rsrs).

Mas algumas janelas estão sendo abertas, por gente de lá de dentro mesmo, como é o caso do “rebelde” Luiz Felipe Pondé. (rsrs)

Abçs

Eduardo Medeiros disse...

fantástico artigo, Levi.
Li por esses dias o "Guia Politicamente incorreto da filosofia" e degustei cada artigo do Pondé que me obrigou a pensar e refletir bastante. Como sugere o texto, pensar é algo que a universidade não quer mais que os alunos façam, voltadas que estão a um tecnicismo como você bem disse, parecido mais receita de bolo.