18 dezembro 2017

O Natal e os Anjos do "Senhor Mercado"






Às vésperas do Natal de 2010 escrevi, nesse meu recanto do Google, o ensaio “NATAL: É Tempo de Rever Nossos Anjos” . No prólogo do artigo postado naquela época, dizia eu: “A história dos anjos se confunde com a história do homem, estando, relacionada ao nosso lado profano e ao nosso lado divino. A presença invisível dos anjos se confunde com o universo de nossos sentimentos, ambições, virtudes e falhas. Uma história repleta de contradições.”

Em sentido metafórico, a mente é a morada dos anjos. No mês de dezembro suas vozes se tornam mais audíveis, mais estridentes, atiçando de forma violenta os desejos humanos narcisistas. Na atual sociedade de consumo, as vozes angelicais do Natal têm ressoado fortemente no coração de muitos. O Rei e poeta bíblico Davi em seu mais famoso poema(Salmo de n° 23), cantava: “O Senhor é meu Pastor, Nada Me Faltará”. O desenvolvimento tecnológico criador de necessidades e impulsionador de desejos, na era moderna, para elevar as vozes de seus anjos, fez do título da poesia de Davi um bordão para servir de marketing a um indomável Senhor: O Mercado. Segundo os evangelhos, Cristo, uma vez, tentou expulsar os anjos desse “Senhor Mercado” do interior do Templo de Jerusalém, no episódio que ficou conhecido como “A Expulsão dos Vendilhões do Templo”. Eles faziam comércio com o sagrado, ocasião em que o Messias prometido sapecou a célebre frase “minha casa é casa de oração, e não covil de ladrões!”.

No Natal, os anjos do “Senhor Mercado” parecem redobrar os decibéis de suas vozes. Os que resistem ir às compras, usando seu décimo terceiro salário para pagar suas dívidas, são poucos. “Corra, você pode chegar atrasado aos nossos standards!” ecoa em uníssono o coral de anjos do Senhor Mercado, ao som de emocionantes cantos natalinos. É impossível o consumidor resistir ao apelo dos anjos que se encontram em torno do messias abarrotado de presentes em sua manjedoura. No imaginário coletivo da civilização ocidental, os mensageiros angelicais, nas festas do período natalino, portam uma rica faixa com dizeres em letras garrafais imensamente coloridas e flamejantes, condicionadores de êxtases consumistas irresistíveis:
A via para a felicidade ou o máximo de prazer passa pela satisfação irrestrita de todos os desejos. Não temam começar o próximo ano endividado, o que importa é seu prazer, aqui e agora. O Nosso Deus Mercado promete que todos os gastos que ultrapassar o salário de seus clientes serão beneficamente negociados no futuro”.


Na “Tentação do Deserto” metáfora dos “Desejos humanos”, relativa ao TER” , até mesmo Cristo se viu diante de um oferecimento, cuja essência tem tudo a ver com a lógica mercantil do mundo de hoje: “Tudo Isso Te Darei se Prostrado me Adorares”. É na época natalina que os anjos do Senhor Mercado mais martelam em nossos ouvidos uma musicazinha mundialmente conhecida, símbolo maior do $eu “céu paradi$íaco”, que assim termina: “...muito dinheiro no bolso, saúde pra “dar” e VENDER”. Enquanto Javeh, no Velho Testamento, conjuga o verbo SER, ao afirmar “Eu Sou o Que Sou!”, o deus do Mercado global troca o SER pela forma verbal TER, o mais almejado verbo da supermoderna sociedade de consumo. Para ele o consumir é bem mais interessante: alivia a ansiedade porque o que se tem não pode ser tirado. Pode, sim, ser trocado por outro bem que mais se identifique com a moda da época. Talvez por isso, o Deus Mercado, através de seus anjos, não cansam de anunciar em bom som: “Eu Sou o Que Tenho e o Que Consumo”. Enquanto a mensagem do Messias visa não ceder às tentações do Desejo no Modo TER, Papai Noel, o anjo maior do “Deus Mercado” insufla a capitulação. Os anjos comerciais estimulam o sujeito a não resistir a esse tipo de tentação, induzido-o dessa forma, a uma relação de completa inércia e não de vida com os objetos que obsessivamente adquirem. Se as pessoas não podem conter o imbatível Deus Mercado, é porque se encontram Nele contidos ou entranhados, desde tempos imemoriais.

Não nos causa surpresa, o Evangelho da Prosperidade Econômica ser, hoje, o que mais cresce no mundo ocidental, Seus anjos estão anunciando suas “Boa$ Nova$” por toda a parte, mais especialmente no âmbito da Televisão (os Tele-Anjos). A adoração que os humanos têm por eles é irresistivelmente tentadora. Esses hábeis anjos conjugam o verbo TER em todas as pessoas. É Importante salientar, aqui, que a locução “eu tenho”, no hebraico de forma indireta, significa o maravilhoso sentimento de posse: “é para mim”. “Quem me livrará do corpo dessa morte?!” escreveu o apóstolo Paulo aos Romanos. Parafraseando o apóstolo fundador do cristianismo, eu diria: quem resistirá ao divinal/profano chamamento do Deus Mercado, autor de anúncios como este?:

Esse mês todas as famílias serão ricamente compensadas. Todos poderão ter acesso a generosa oferta de oportunidades de endividamento. Não importam a desigualdade social, a corrupção endêmica e a miséria que assolam o país, o que importa é que Deus se fez Mercado e habitou entre os seus para a glória de todos que possuem a sua poderosa moeda de troca”.

Robert Merton, sociólogo estadunidense, há meio século, já falava do “Efeito Mateus”, que Wolfgang Streeck redenonimou de “Princípio de Mateus”, e que o Deus Mercado tomou emprestado dos evangelhos, para fazer de seu: “Pois a qualquer que tiver, será dado, e terá com abundância. Ao que não tiver, até o que tem será tomado.(Mateus 25:29)
O homem moderno não pode conter o imbatível Deus Mercado, exatamente por estar Nele contido. É precisamente no mês de Dezembro que os anjos do Deus Mercado se soltam para sussurrar aos ouvidos de muitos:

Você quer Ter(se apossar) das Boa$ Nova$ de $alvação? Se responder, SIM, cuide de trocar seu carro, trocar seu smartphone ultrapassado por um mais moderno, não deixe de adquirir sapatos novos, calça e camisa de grife, seu vestido estiloso e brilhoso sempre a combinar com joias de última geração. Dirija-se aos templos modernos de consumo(shoppings), e procure se encantar e se embevecer com os sensacionais objetos irrecusáveis que estamos exibindo em nossas vitrines celestiais. Se, por outro lado, responder 'NÃO', será condenado ao ostracismo eterno”.

O Deus Mercado não quer que ninguém se perca: A rendição aos Desejos de Posse será a única opção para não se cair na “Perdição Eterna”.


Por Levi B. Santos
  Guarabira, 18 de dezembro de 2017


Site da Imagem 1: www.mundoemtranse.com,br

14 dezembro 2017

O Poeta e o “Desejo de Falar com Deus”




Nada melhor que a palavra poética para exprimir o vazio existencial do sujeito. A ânsia de retomar o desejo inefável das benesses sagradas de um pai simbólico, faz com que o individuo “tenha que” abdicar das vestimentas que recobrem sua nudez. É justamente a falta que provoca em nós o desejo. Uma vez, satisfeito o desejo, o vazio volta a nos encontrar em uma outra parte de nossa trágica vida.

...A arte é, em si, capaz de comover o humano, desde os primórdios da civilização” afirmou a psicanalista Marília Brandão Lemos, em um artigo publicado na conceituada Revista “Estudos de Psicanálise” (PEPSIC) de setembro de 2006, sob o título: “Poesia, Psicanálise e Ato Criativo” , citando, em seguida, a providencial frase do poeta Mário Quintana: “E eis que, tendo Deus descansado no sétimo dia, os poetas continuaram a obra da criação.”

Toda criatura é atravessada por um Desejo de Ser (ou de Ter), desejo intermediado pela palavra. Parafraseando o prólogo do Evangelho de S. João, eu diria que, o desejo se fez gerado em nossa carne, antes mesmo de termos consciência: É sobre essedesejo criador”, que Marília Lemos, em seu artigo abaixo, faz a seguinte alusão:

O Poeta, é um artesão da palavra, que forja o verbo com martelo e bigorna. Forjar a coisicidade da mesma. Como disse Lacan: 'à dignidade do indizível', do objeto perdido, do pulsional em seu efeito sublimatório que se sustenta sobre o NADA.
Segundo o criador da psicanálise, o desejo expresso nas artes, na literatura (poesia) adviria de redutos do processo psíquico primário, e o artista teria acesso privilegiado aos elementos do Inconsciente, pelo seu talento natural”.

No imaginário do poeta/religioso, à linguagem universalizante do Superego (imago divina paterna) é representada por algo interno que não cessa de ordenar ou exigir(simbolizado no poema de Gil, pela expressão repetitiva “tenho que...”). O “tenho que calar a voz/ tenho que aceitar a dor” é a condição necessária para que o amargor existencial do sujeito seja amenizado.

Todo esse preâmbulo de divagações pelos meandros da arte poética, da psicanálise e da Religião tem um propósito salutar. Portanto, não me alongarei, partindo para o que realmente interessa:

Movido por um processo dialético/simbólico/existencial, Gilberto Gil, elaborou, em 1980, um poema metafórico, representação da ambivalência dos afetos humanos Se Eu Quiser Falar com Deus”.

Nas palavras da psicanalista, Marília Brandão Lemos: “… o artista para criar, cria do despoder, da fraqueza humana, da impotência, do desamparo humano e não da Providência Divina. Cria da finitude e não da Eternidade Divina”.

Na realidade, o poema de Gil revela, mais que tudo, o desejo do artista, em seu caos interno, por “...um espaço onde ainda seja possível se mexer, quiçá voar”.

Decidido pela estrada/Que ao findar vai dar em nada/Nada, nada, nada/ Do que eu pensava encontrar” O desfecho do poema evidencia elementos de fundo psicanalítico.

Como a linguagem do Inconsciente (Deus – Pai simbólico) corresponde ao avesso do discurso do sujeito, o desejo é, ao inverso, dom daquilo que não temos. É confusão da falta, do vazio; é o oco ou espaço vazio de um vaso, ou seja, é o Nada. Nas palavras do psicanalista francês, Philippe julien, “o Desejo está para além da linguagem, hiância sempre aberta, a um só tempo lugar de medo e de fascinação”.

O “Nada do que desejava encontrar” do final do poema de Gilberto Gil, é uma espécie de queixa, e em termos psicanalíticos corresponde ao que Philippe Julien, aqui, afirma:

O que ele busca no outro é o precipício de seu desejo, para que o abismo de sua própria ausência tenha mais atrativos para o outro que sua limitada presença”.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 14 de dezembro de 2017

10 novembro 2017

A “Suprema Compaixão” no Reino de Trump





Na cerimônia de posse do presidente republicano, Donald Trump, a pastora Paula White fez, em oração, esse pedido: “Deus misericordioso, revele ao nosso presidente a capacidade de conhecer a vontade, a sua vontade, a confiança para nos liderar e a COMPAIXÃO para ceder ante os nossos melhores anjos.” (Vide lin). 

Em seu discurso de posse, Trump bradou: “Essa carnificina americana termina aqui e agora!”. As tiradas de cunho xenófobo do presidente recém eleito, não se constituem surpresas: as profecias anunciadas durante sua campanha já tratavam do pacote de maldades que viria à baila, assim que o resultado das eleições fosse oficialmente confirmado. 

O “novo-velho” messias da hipermodernidade americana, em seus discursos fundamentalistas, prometia devolver a “Terra Prometida” aos americanos, ao mesmo tempo, cheio de empáfia, ameaçava expulsar e devolver os imigrantes a seus países de origem. Achando pouco, para gáudio dos ”compassivos” da nação que o apoiou, fomentava a construção de um muro de separação na fronteira de seu reino com o México.

A prece da pastora implorando a Deus o derramamento da compaixão no coração empedernido de Trump trouxe a minha memória dados estatísticos sobre esse afeto à moda americana que o escritor e historiador inglês, Theodore Zeldin, em Uma História Íntima da Humanidade” (obra antológica escrita há mais de setenta anos), tão bem dissecou. Saliente-se que as referências estatísticas desse autor, apesar de serem antigas, na atualidade permanecem praticamente incólumes. Sobre a Compaixão Americana, disse Theodore, de forma contundente:

Hoje em dia, 45% de todos adultos se engajam em trabalho voluntário, ajudando os outros pelo menos cinco horas por semana. Mas a maior parte deles(54%) acredita que as pessoas, em geral, atraem sofrimentos e que a caridade não é uma resposta, mas apenas um curativo temporário. Dois terços dos americanos consideram importante não se envolver muito nos problemas alheios: antes de tudo, convém cuidar de si mesmo e, se ainda lhe restar força, então ajude os outros. […] Ficou demonstrado que os frequentadores de igrejas não são mais compassivos do que aqueles que não as frequentam; não param para prestar socorro a um garro enguiçado nem cuidam de parentes idosos com mais frequência. Alguns apreciam aquela sensação de 'amaciar o ego' ao serem tidos como generosos, ou heróicos, e se sentem aventureiros quando demonstram misericórdia; é o espírito de aventura o que mais o estimula. Nos velhos tempos, os americanos tentavam ser compassivos, em obediência aos mandamentos de Deus. Agora, valem-se mais frequentemente da terapia para explicar seus motivos: a caridade lhes faz bem, melhora a imagem que fazem de si”.

Vez por outra estamos a confundir “compaixão”, com “pena”(dó). Compaixão, seria sentir com o outro, sofredor. O sentimento que expressamos como pena, por sua vez, poderia dar a ideia de algo partindo de um ser em condição mental superior para um ser em estado psíquico inferior. Mas a pena que sentimos do outro que sofre, pode perfeitamente ser uma ressonância ou consequência de um acontecimento doloroso vivido em nosso passado de criança ou de adolescente. No caso, esse sentimento estaria mais para a compaixão, se por compaixão entendêssemos a repetição imaginária de algo doloroso vindo dos recônditos de nossa psique. A situação daquele que sofre, detonaria em nós o gatilho de um despertar. Seria o caso de se dizer que o afeto da compaixão, volta e meia, a nós retornaria no encontro com o outro que no presente padece; as dores do outro corresponderiam às dores primevas, quem sabe, relativas às coisas aparentemente esquecidas, mas poderosamente arquivadas nos porões do nosso sombrio inconsciente.

Mas há outras modalidades forçadas da “generosidade compassiva”, que talvez estejam a balançar os corações dos republicanos que elegeram Donald Trump. Por se situar dentro do jogo do poder terreno, e ser de natureza interesseira, essa modalidade de compaixão está mais para uma farsa.

Como bem sabemos, a “generosidade compassiva” pregada pelas religiões dominantes, em sua prática, carrega o cheiro da vaidade. No discurso da religião oficial pedagógica americana do Reino de Trump, esse afeto “generosamente compassivo”, traduzido pelo lado avesso, busca, sobretudo, a admiração das pessoas, reforçando a vaidade ou o caráter mercantil e fundamentalista de grande parte da suprema membresia republicana.

Na verdade, o mote de fundo puritano “América para os Americanos” , brandido pelo presidente, assemelha-se muito ao apregoado por Hitler: o Führer alemão no passado de tão triste memória, invocava a pureza da raça ariana, em detrimento dos judeus e demais minorias. Hoje, na esteira da xenofobia trumpiana, ganha terreno uma compaixão às avessas assumida de forma egocêntrica pelos ativistas da supremacia branca dos EUA. Recentemente, a cidade de Charlottesville(EUA) serviu de palco para a explosão de ódio por parte de "brancos supremos" contra negros e judeus.

Ao que parece, a Era Trump veio despertar, em um suposto povo divinamente escolhido para mandar e desmandar na América, a adormecida intolerância contra os considerados hereges e os rotulados de “raça inferior”. No entanto, quando esse “povo de sangue supremo” planeja a purificação de seus pecados ou podridões, são exatamente os marginalizados que são usados por ele como “bode expiatório”(no ritual de purificação praticado pelo povo hebreu, um bode era escolhido para carregar os pecados da comunidade. Depois, o animal era abandonado no deserto, para que os males nele projetados ficassem bem distantes do “povo sagrado”).

Na visão radical do todo-poderoso, Trump, a compaixão é entendida pelo avesso: os oprimidos não são os estrangeiros que vivem nos EUA, são os americanos ressentidos que perderam um pouco de suas riquezas, e agora culpam os imigrantes pelo seu estado atual. Mas, no Velho Testamento há uma passagem bastante interessante, um conselho dado ao povo escolhido de Javeh, para que pudesse manter o passado bem vivo em sua mente, quando acolhido foi em terras estranhas (Egito). No entanto, hoje, em benefício próprio, os remanescentes desse povo preferem se fazer de cegos para aquilo que os escribas, a respeito do sentimento compassivo, deixaram escrito no Livro Sagrado(Torah) do Deus a quem supostamente seguem:

Ao estrangeiro não maltratarás, nem o oprimirás, pois vós mesmos fostes estrangeiros na terra do Egito.” (Êxodo 22: 21)


Por Levi B. Santos
Guarabira, 10 de novembro de 2017

Site da Imagem do topo: vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/preconceito-a-supremacia-branca-e-o-racismo-nos-eua.

02 novembro 2017

Das Vaidades Últimas


....                                                     [...]Vaidade das vaidades, tudo é vaidade. (Eclesiastes 1:2)





Vaidade, sorrateiro sentimento do coração humano.
Tem às vezes aparência de uma virtude em excesso.
Mas o maior dos vaidosos, não admite a vaidade;
Não sabe que nasce com ela. E ela se acaba nele.
Até mesmo na humildade, ela está à sua espreita.
É a companheira sombria, misteriosa e esquisita.





De todas as paixões, é ela a que mais se esconde.
Até as ações mais pias, podem nascer da vaidade.
Quem tem não a conhece, tampouco a distingue,
É como espelho de grau que aumenta nossa forma.
É um instrumento que tira dos olhos nosso defeito,
Ao mesmo tempo expõe os defeitos que há no outro.





Das vaidades últimas, ela é vanglória antecipada,
Ao sermos despejados de volta solene à terra.
A vaidade está presente até mesmo na agonia,
Enriquecendo de adornos o pobre vil moribundo.
Como se na hora fatal, o morrer não fosse nada,
E o nosso mundo de coisas, pudéssemos conduzir.





Vaidades das vaidades. Em tudo está a vaidade.
Vaidade que se nota até nos últimos suspiros,
Ela está nas pompas frias da derradeira partida,
Está na lápide brilhante de um branco mausoléu,
Está nas letras inseridas na pedra fria marmórea;
Na suntuosidade do túmulo, a inspirar veneração.





É como um sonho infinito de desejo recorrente,
Encastelado no centro da moldura imaginária.
Até no nobre ataúde, a vaidade está presente,
Até mesmo na antevisão do nicho no altar-mor.
É nos mórbidos preparos da funesta caminhada,
Que o ser inconsciente desfruta a vaidade última.




Versos por Levi B. Santos
Guarabira, 28 de Dezembro de 2008

09 outubro 2017

Em Tempos de Banquetes com Facas Pontiagudas (Reflexão)





No momento em que a sociedade, especialmente na figura dos três Poderes da República, exibe uma confrontação na “base do quem pode mais?”, nunca é demais lembrar uma emblemática invenção ocorrida no século XVII:

Se hoje comemos com facas de ponta arredondada — e um dia ela já foi pontiaguda —, devemos isso ao cardeal Richelieu. Ele mandou arredondar a ponta das facas para que os nobres participantes dos banquetes não se cutucassem indevidamente”.

Dois grandes banquetes acontecerão em nossa republiqueta: Um na quarta-feira (dia 11) no palco do STF, e outro na quarta-feira seguinte (dia 18) na Arena do Senado. Há quem acredite que o espírito do cardeal Richelieu vai baixar nas duas mega-atrações gastronômicas. O nó é que no país “eminentemente cristão”, como acontece sempre nos grandes embates futebolísticos, se espera que Deus dê uma mãozinha ou vitória para um dos lados.

Um argumento do rabino, Nilton Bonder, da congregação Israelita do Brasil, cai bem nesses tempos agudos de guerra de egos. Ele dizia que o Triunfo representava a mais efêmera das seguranças. Baseando-se nos embates dos judeus com assírios, gregos, romanos, bizantinos, cruzados e otomanos, concluiu que a vitória é uma metáfora recorrente de que o vencedor de hoje é o derrotado de amanhã.

Não haverá paz enquanto ambos, ou melhor, todos os lados interessados não forem derrotados. Uma derrota na expectativa de triunfo de todos é a única esperança. — finalizou, de forma contundente, o rabino em seu ensaio - “Tolerância e o Outro”. [Judaísmo Para o Século XXI – Jorge Zahar Editora]

Mas voltemos a nos deter sobre a metáfora — “faca pontiaguda” —, dos banquetes recém-encomendados em nosso efervescente mundinho político. Essa expressão metafórica me trouxe a lembrança uma gíria, hoje, muito usada nas redes sociais; trata-se do termo “lacrar”. Para os internautas, essa expressão representa a última fala ou a última palavra a ser dita para lacrar ou fechar determinada discussão ou debate. O que o ente virtual das redes talvez não saiba é que a estocada da faca pontiaguda, provavelmente, não será fatal, pois, sobre o que for decidido, o tempo logo se encarregará de cicatrizar a ferida narcísica. Isso significa que nenhum debate/embate pode ser encerrado por força de um argumento; ainda mais quando se sabe que em tempos de contaminação ideológica, esse vírus cerebral endêmico, anda a invadir as cabeças dos mais destemidos baluartes de nossa “democracia tupiniquim”.

Para o psicanalista Jacques Lacan, há sempre um furo, da ordem do indizível, naquilo que se declara como verdade, ou seja, “quanto mais o sujeito tenta resgatar a si mesmo, buscando a verdade de sua conduta, mais depara com algo não seu, que vem do outro”.

Pensando bem, é em momento de severas crises ou de graves tensões, que poderosas influências ou ressonâncias vindas dos recônditos do nosso aparelho psíquico, afluem para o terreno escorregadio da consciência, como se estivessem a desmentir a nossa lógica comum de que somos seres imparciais.

Ainda divagando sobre a metáfora “faca pontiaguda” (ou espada), nunca é demais lembrar o mitólogo americano, Joseph Campbell que, embasado na psicologia junguiana resumiu tudo o que aqui escrevi, de uma forma maravilhosamente cristalina: “No Reino humano, abaixo do solo do comparativamente ordeiro e pequeno recanto que chamamos consciência, encontram-se insuspeitas cavernas de Aladim”.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 09 de outubro de 2017


Site da Imagem:eventbrite.com.br/blog/pre-evento/mais-estilos-de-montagem-para-seu-evento

24 setembro 2017

Um Duro Recado




Em seu artigo de última página da Revista Veja que saiu às bancas hoje, (dia23), o ensaísta J. R. Guzzo faz eco a um recado inusitado dado por um General da ativa do Exército aos três poderes da República, quando do alto de seu cargo, assim se referiu de forma contundente: “ou as instituições solucionam o problema politico, pela ação do judiciário, retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos, ou então nós teremos de impor isso”. “O alto comando tem 'planejamentos muito bem feitos' para esse objetivo, ele confirmou que os militares não vão ficar assistindo em paz ao apodrecimento simultâneo do Executivo, Legislativo e Judiciário por causa da corrupção, deboche e impunidade de uma vida pública cada vez mais depravada” ― escreveu Roberto Guzo em um momento emblemático do seu texto, sob o título “Chegará a Hora”.

Está bom assim ou precisa mais?” ― pergunta o autor, a certa altura do seu ensaio-alerta, para em seguida acrescentar: “Havia mais de 30 anos seguramente, não se ouvia um oficial superior dizer nada parecido, nem de longe, sobre as misérias da política brasileira e a possibilidade de 'chamar a tropa' para resolver as coisas".

Mesmo sem povo nas ruas, é mais que evidente a indignação daqueles que trabalham e veem parte de seus impostos espalhada no chão de um vasto apartamento, sem que até agora, os destinatários da grande bolsa bilionária tenham aparecido para relatar toda a trama perversa de que foram autores. É bom lembrar, nessas horas sombrias, o que disse o psicanalista Jorge Forbes, sobre a VERGONHA : A pessoa deve apresentar alguma coisa que, se perdida, a vida não vale a pena”.

Se a Vergonha for atropelada pelo cinismo, ressonâncias de um tempo pesadamente triste de nossa história recente continuará a pairar perigosamente sobre nossas cabeças.


Guarabira, 23 de setembro de 2017

06 setembro 2017

O Que Não Me Contaram na Escola Sobre o “Grito do Ipiranga”



Em plena tarde do dia 07 de setembro de 1822, D. Pedro I que saíra de Santos para resolver uma pendenga entre dois grandes partidos políticos de São Paulo, foi surpreendido por cólicas atrozes seguidas de numerosas evacuações intestinais. Várias vezes o príncipe apeou-se de sua mula baia, para entre uma ida e vinda no matagal da beira da estrada bem perto do Riacho do Ipiranga, expelir o abundante material fecal infectado de seus inflamados intestinos, fruto, talvez, de alimentos contaminados ingeridos com sofreguidão no dia anterior. Foi em meio a essa agonia tremenda que, tonto e debilitado pelo quadro de desidratação, dirigiu-se ao Padre Belquior —, peça importante de sua pequena e simples comitiva.
E agora, Padre Belchior? ― disse com voz fraquinha, D. Pedro I (pálido e suando frio, incomodado por ardências provocadas pelas fezes ácidas).
Não há outro caminho, que não seja o de cortar as relações da colônia com Portugal ― retrucou de modo incisivo, o padre e amigo, pouco antes de receber uma missiva de D. Leopoldina que fazia referência a um pomo maduro a ser colhido rapidamente.
D. Pedro caminha alguns passos (trôpegos). De repente, após tomar um chá de folha da goiabeira, estanca diante dos animais (que, provavelmente estavam comendo capim à beira da estrada), e diz (com fala trêmula, já bem enfraquecido pela intensa disenteria):
Nada mais quero com o governo Português!" [Baseado no livro '1822' - de Laurentino Gomes]


P.S.:
Segundo a pesquisadora Cecília Helena Salles de Oliveira, “a data 7 de setembro de 1822 não foi considerada, de início, particularmente relevante como marco simbólico da formação da nação, nem pela imprensa, nem pelo próprio D. Pedro”. [História Viva/Dueto Editorial]
66 anos após o grito (que não houve – grifo meu), Pedro Américo se ofereceu para fazer a obra e ganhou uma boa quantia pela encomenda: 30 contos de réis – como comparação, em 1888, o governo de São Paulo aplicou 22 contos de réis na área da saúde. Na época, muitos políticos achavam que não seria preciso pedir a alguém de fora para fazer o quadro (Américo já vivia na Itália), mas, como tinha amigos influentes, ele conseguiu a indicação” Na verdade o quadro 'Independência ou Morte!' foi um plágio descarado do quadro do francês Ernest Meissounier, o qual retratava a vitória de Napoleão em 1807 na batalha de Friedland [Vide: História Pensante]
O grito farsesco da narrativa oficial inaugurada pelas elites em sete de setembro de 1822, em pouco mais de sessenta e sete anos, novamente sem a participação popular, foi encenado no Rio de Janeiro, naquilo que denominaramProclamação da República” (15 de novembro de 1889). Do Grito (que não houve) de D. Pedro I à badalada “Reforma Política” dos dias atuais, lá se vão 195 anos de histórias mal contadas.


Site da Imagem do Topo: novarussanostrilhos.blogspot.com.br

Levi B. Santos
Guarabira, 06 de setembro de 2017

14 agosto 2017

Pressupostos Subjetivos Comuns ao Cristianismo e ao Comunismo — Um Olhar de Slavoj Zizek (*)




A Abordagem realizada por Jacques Lacan, redimensionando a obra de Freud na pós modernidade, levou o filósofo Slavoj Zizek a uma aplicação dos conceitos psicanalíticos lacanianos no âmbito do cristianismo e do Comunismo. Como socialista, filósofo e psicanalista, Zizek, insiste em ver algo comum nessas duas instâncias. Ele atesta que há nos indivíduos um elemento subjetivo por demais semelhante a uma ideologia —, que os impulsionam a dar suas próprias vidas em prol de uma elevada causa. Esse pressuposto subjetivo que no cristianismo é simbolizado pelo “Espírito Santo”, Zizek dá o nome de “ente virtual”. Na linguagem lacaniana, Cristo seria o “objeto parcial de Deus”“um órgão autônomo sem corpo, como se Deus arrancasse os olhos da própria cabeça, e os virasse para si mesmo de fora.”

No início da revolução russa, a efervescência comunista tinha o mesmo efeito catártico da religião cristã. Conta Zizek que enquanto Lenin discursava para as plateias de camponeses e congressistas, havia sempre entre eles, cartazes portando um slogan roubado inconscientemente da seara do cristianismo, com os seguintes dizeres: “O Reino dos operários e camponeses durará para sempre”. Não precisa ser psicanalista para perceber que essa significativa frase dos revolucionários comunistas revela, mais que tudo, um padrão-ideal latente, análogo ao da religião cristã. Esse fenômeno típico do cristianismo, queira ou não queira, continuará persistindo na subjetividade daquele que se considera comunista. De forma subjetiva (inconscientemente), esse arquétipo permeia o coração dos camponeses socialistas, como se fosse o eco da citação do salmista Davi: “Porquanto o Reino de Deus é eterno, e seu domínio perdura por gerações e gerações” (Salmo 145: 13).

Segundo Zizek, “Trotski estava certo quando disse que o homem não vive apenas de política, fazendo uma clara alusão à história da Tentação de Jesus no Evangelho de Mateus, visto que o homem não vive apenas de pão, mas de cada palavra pronunciada pela boca de Deus”. Lenin, não valorizava os elementos de fundo religioso que permeavam a consciência dos trabalhadores porque, com certeza, ignorava que os arquétipos cristãos fizessem parte de uma estrutura indestrutível na psique dos revolucionários soviéticos; não sabia que os camponeses estavam a elaborar apenas um movimento racional/reacionário a um componente subjetivo enraizado nas profundezas de suas próprias mentes.

Segundo Engels, os princípios fundamentais extraídos do livro “O Capital” de Marx, por mais paradoxais que sejam, tinham uma relação intrínseca com os pressupostos do Cristianismo. Talvez resida aí o motivo pelo qual o livro por excelência dos países socialistas do continente europeu, tenha sido denominado — “A Bíblia da Classe Operária”. Não foi a toa que o papa Francisco, o mais nobre representante do Catolicismo, fez a recente declaração: “são os comunistas os que mais pensam como os cristãos. Cristo falou de uma sociedade onde os pobres, os frágeis e os excluídos sejam os que decidam. Não os demagogos, mas o povo, os que têm fé em Deus ou não.”

Para realçar o fenômeno de natureza subjetiva presente tanto naquele que professa o cristianismo quanto naquele que o nega, Zizek, faz alusão ao filme “Câmara-Olho” (1924), clássico do cinema mudo, de Dziga Vertov, o qual faz referência a autonomia dada ao olho de uma câmera para vaguear e observar o regime da União Soviética de 1920 no que diz respeito a sua situação política e econômica. No filme, em consonância com a expressão “lançar os olhos sobre algo”, Martinho, mítico personagem dos contos de fadas franceses, para encontrar uma esposa resolve atender o pedido encarecido de sua mãe: foi “passar os olhos nas moças” que rezavam na igreja. Para isso, Martinho vai primeiro no açougueiro e compra um olho de porco e joga sobre as moças. À sua mãe, Martinho dirá depois que elas não ficaram impressionadas com sua atitude.

Zizek toma o filme como pano de fundo para suas incursões filosóficas sobre o Olhar animal do Outro”. Sobre a experiência do “olhar”, ele conta que, certa vez, para examinar um caroço em um lado de sua cabeça, teve que fazer uso de um espelho duplo. Foi surpreendido, ao ver de soslaio, em um dos espelhos, seu perfil olhando para ele mesmo na superfície do outro espelho. Uma situação inusitada em que o sujeito ver a imagem especular dele mesmo como se tivesse sido arrancado para observar de fora, a si mesmo. Diz, Zizek: “era como meu olhar não fosse mais meu, como tivesse sido roubado de mim”. Recorrendo à psicanálise, acentua que Lacan denominou “objeto pequeno a” a essa parte de nossa imagem em perfil, refletida em uma das faces do espelho duplo —, percepção imagética que escapa à relação simétrica que experimentamos diante de um espelho-uno.

Algo homólogo ao dogma da encarnação cristã, Zizek viu na película cinematográfica —, assemelhando-se a experiência de ser surpreendido por um olho desvinculado de seu próprio corpo, a observá-lo à distância. No cristianismo, são os olhos do Senhor que se exteriorizam para observar o homem de fora para dentro de si: “Os olhos do Senhor estão em toda a parte. Ele observa atentamente os bons e os maus” (Provérbios 15: 03). No comunismo os “olhos do Senhor”, representado por pressupostos coletivos (os utópicos desejos de bem-estar geral da Nação ou do Regime) é o seu Deus.

Nietzsche, em seus últimos momentos de vida reflexiva, percebia em si um Deus morto: rabiscava em seus papéis: “Deus está morto”, mas, paradoxalmente, assinava embaixo a palavra “Cristo”. Freud, era um “ateu estranho”: muito embora não se submetesse ao ritual sagrado do judaísmo protegia em sua subjetividade a função paterna. Considerava que essa origem simbólica patriarcal remontava à morte do Pai da horda primitiva, pelos filhos. No entanto, não foi Freud e sim Lacan, que imortalizou a célebre frase: “a verdadeira fórmula do ateísmo é que Deus é inconsciente”.

Digna de registro é essa categórica declaração de Zizek: apesar do comunista/ateu na vida pública professar seu ceticismo, continua acossado pelas crenças e proibições severas. O ateu moderno pensa que sabe que Deus está morto; o que ele não sabe é que, inconscientemente, ele continua acreditando em Deus. O que caracteriza a modernidade não é mais a figura-padrão do crente que nutre em segredo dúvidas íntimas sobre sua crença e se envolve em fantasias transgressoras. [...]O Espírito Santo na Teologia Cristã é um “ente virtual” no sentido de que seu status é o de um pressuposto subjetivo: Ele só existe na medida em que os sujeitos agem como se Ele existisse. Seu status é semelhante ao de uma causa ideológica como o Comunismo. […] Depois da crucificação, da morte do Deus encarnado, o Deus Universal retorna como Espírito da comunidade de fiéis, isto é, Ele é quem passa da existência como realidade substancial transcendente para um ente virtual ou ideal que só existe como “pressuposto” dos indivíduos que agem.

Zizek se vale dos símbolos do cristianismo para demonstrar que o comunista não é, em sua essência, tão diferente do cristão. Ambas as instâncias, por um viés utópico, idealizam seus anseios e desejos mais profundos. Infelizmente o Marxismo parece não ter assimilado essa kenosis: o de estar tão próximo da substância divina e imaginá-la, ao mesmo tempo, tão distante.

(*) O ensaio acima postado foi baseado nos dois capítulos: “O Cristianismo Contra o Sagrado” e “Apenas um Deus que Sofre Pode nos Salvar” — do Livro “O Sofrimento de Deus” — de Slavog Zizek (Edição 2015 - Editora Autêntica).


Por Levi B. Santos
Guarabira, 14 de agosto de 2015


07 agosto 2017

A Alma Dúbia dos Poetas




Na medida em que evidencia um elemento comum às artes e à religião, uma recente afirmação do filósofo suíço, Alain de Botton, se presta bem ao entendimento da fonte onde brotam os afetos paradoxais que habitam a alma humana. Disse ele: “Tanto na religião como nas artes há um elemento catártico”.

O personagem Sócrates já definia o poeta como sagrado. Sagrado, por ser incapaz de produzir se o entusiasmo não o arrastar e o fizer sair de si mesmo. Paradoxalmente, é o mesmo Platão que distingue no poeta um outro polo (o antagônico e demasiadamente humano), ao declamar que o seu delírio é um sinal de posse demoníaca.

O nosso poeta Olavo Bilac, por sua vez, fez uma síntese representativa dos polos ambivalentes da alma. Num rasgo bem humano, descreveu brilhantemente seu dualista coração:

E no perpétuo ideal que te devora/ residem juntamente no teu peito/ Um demônio que ruge e um Deus que chora.”

O poeta Ferreira Gullar que se definia como ateu, em seus versos, dizia que em si existia uma parte desconhecida. Não importa o nome que se dê a esse desconhecido. Mesmo que se venha nomear esse lado desconhecido, ele será sempre um enigma. Não importa que, através de uma racionalização defensiva, o poeta chegue a se declarar: “eu sou isso; ...sou aquilo”. Para além das respostas racionais/reacionais, o que importa é que na ânsia de traduzir-se, o poeta exprima em metáforas a dualidade de seus sentimentos, como a que está presente nessa poética estrofe:

Uma parte de mim é permanente/ Outra parte se sabe de repente”

Em outras palavras, Gullar talvez quisesse dizer: Uma parte de mim é previsível. Outra parte de mim é desconhecida de mim mesmo, por isso me surpreende. Freud diria: uma parte de nós é consciente/ Outra parte de nós é inconsciente. Jung diria: Uma parte de nós é transparente/ Outra parte de nós é transcendente.

O advento da psicanálise veio demonstrar que a certeza de que o homem é senhor de si mesmo caiu por terra. Abriu-se então o véu para se ter acesso aos recônditos mais profundos da mente, e com isso, se chegar a conclusão de que as ideias e pensamentos recalcados no início de nossa formação biopsíquica continuam a participar de nossa vida mental de adulto. Hoje, sabe-se perfeitamente que o homem das artes (principalmente o poeta) em seus devaneios, usa incessantemente o material recalcado nas profundezas abissais de sua psique. As ideias que passam pela cabeça do poeta no presente e levadas para o porvir estão, na verdade, atreladas a um passado indeletável. Em vão, o artista consegue tomar partido de um dos lados ou pólos ambivalentes de sua alma. Ele será duplo até o fim, pois grande parte do que fala e escreve e o motiva provêm de um mundo ambíguo, recalcado na infância.

Não poderia deixar de aqui ressaltar que é do poeta rotulado ateu, Fernando Pessoa, a mais humana e mais bela narrativa que um cristão jamais ousou fazer sobre o menino Jesus, digna de ser canonizada. (Vide link: “A Mais Bela História de Um Poeta Ateu”)

Conta-se que o Poeta Mário Quintana não acreditava em Deus, mas não dizia isso para não ofender a Nossa Senhora e ao Menino Jesus. Na verdade, os versos de Quintana, com naturalidade e graça, mostram, mais que tudo, elementos antagônicos de seu ser duplo: um mais vestido para apresentação e outro simbolizado como o mais nu dos animais. No poema “Crenças” ele explica o por que” do respeito aos sentimentos dos outros. Foi da lama de seus pensamentos primevos afetos adubados pelas histórias religiosas contadas por seus pais , que Quintana produziu preciosas metáforas sobre nossa natureza dúbia. Afinal, é na poesia que a sujeira do barro e a pureza da água que nos mata a sede, se juntam à elevada linguagem do “céu”.

O religioso fundamentalista pode até se escandalizar com esse verso de Quintana que reproduzo abaixo, mas duvido muito que cada um, lá dentro, não perceba escondido ou quase em oculto, o tal porteiro Glicínio ̶ personagem do mundo pueril e mítico do poeta. Basta voltar a ser criança de novo para, enfim, imbuído de coragem e humildade poder retirar do baú das reminiscências infantis o material dissonante de que fomos forjados. Depois, é só montar as peças, uma por uma, e estará pronto, na imaginação, o reino encantado, onde heróis e vilões coexistem, trocando de papéis ao sabor das circunstâncias.

CRENÇAS”

Seu Glicínio porteiro acredita que rato, depois de velho, vira morcego.

É uma crença que ele traz da sua infância

Não o desiludas com teu vão saber,

Respeita-lhe os queridos enganos:

Nunca se deve tirar o brinquedo de uma criança

Tenha ela oito ou oitenta anos!
[Mário Quintana]
Levi B. Santos
Guarabira, 07 de agosto de 2017